LUGARES DA INFÂNCIA: DAS INSTITUIÇÕES À INFÂNCIA CYBER

                                                                                                      
                                                    
Leni Vieira Dornelles[1]

 Este texto pretende desenvolver um pouco das questões que perpassam as infâncias. Quando falo de infâncias tento mostrar que a partir da modernidade temos investido naquilo que se chama infância e, isto de algum modo, se “esquece” que elas são múltiplas, plurais e diferentes, dependendo do lugar de que se fala. Talvez por ainda manter a visão moderna de infância não se consiga dar conta de que as crianças que delas fazem parte, são hoje um misto de ingenuidade e esperteza, dependência e autonomia, quietude e movimento.

 É impossível se tratar das infâncias sem retomar um pouco de sua história quando autores como Ariés (1981) quando afirmava que na  tradicional sociedade medieval, nos diz que a criança era vista de forma diferente de como a vimos hoje. Segundo o autor, a infância durava enquanto o filho do homem não se bastasse. De criancinha pequena, ela logo se transformava em homem adulto. Logo se afastava dos pais e sua educação se dava na sua convivência com os mais velhos. Havia uma convivência comum entre crianças e homens, ela participava de seus ritos, costumes, festas, brigas, lutas e nele construía-se  como um “adulto”. Ariés (idem.) identifica em seus trabalhos a ausência de um sentimento da infância até o fim do século XVII. Segundo o autor, nos seus primeiros anos de vida, os adultos tinham pela criança  um sentimento de ‘paparicação’ – ela servia de graça para alguns por sua inocência, ingenuidade, gentileza e fonte de distração; para outros, ela era vista como selvagem, anarquista, irritante. Se ela morresse, alguns poderiam ficar tristes mas, logo outra criancinha viria substituí-la.

 A partir do século XVII uma mudança considerável acontece no que diz respeito ao sentimento de infância na sociedade. A infância passa a ser um acontecimento caracteristicamente moderno onde aquilo que originalmente fora biológico, agora é tido como um fenômeno cultural (BUJES, 2002). A criança da sociedade moderna deixa de se misturar ao adulto e de aprender a vida diretamente, através do contato com ele. De um lado, a escola passa a substituir a aprendizagem como meio de educação, por outro, esta separação acontece com o consentimento da família, que passa a se tornar um lugar de afeição necessária.  Para Foucault (1997) a célula familiar a partir do século XVIII se desenvolve em duas dimensões fundamentais - o eixo marido-mulher e o eixo pais-filhos. A família passa a ser o lugar obrigatório da manifestação de afetos, sentimentos, amor, sexualidade.

   Isso modifica também o sentimento de infância e inicia uma era onde a dependência da criança se converte em uma nova característica da mesma. A escola único lugar autorizado para educá-la passa a "enquadradá-la" em categorias de comportamento, que farão de cada uma, um ser educado, prestativo, servil, calado. O dispositivo de aliança entre a escola e a família garante a normalização do passado de cada criança através da categorização de sua conduta, de seu comportamento. 

 A criança “é chamada a razão”, isto faz parte do movimento de moralização dos homens feito pelos educadores e reformadores católicos e protestantes ligados as leis do Estado, da igreja e da justiça. A criança passa a ser considerada raciocinante, ou sujeito cognitivo. A infância não é mais explicada apenas como obra divina mas, como uma etapa biológica da evolução. A razão, autocontrole, expansão da autoconsciência exigido dela traz num primeiro momento, uma dupla atitude moral em relação à infância: preservá-la do mal e das sujeiras da vida, especialmente sua sexualidade, ou fortalecê-la, desenvolvendo o seu caráter e a sua razão. Sendo indivudualizada, torna-se produto de uma sociedade que  reconhece nele a necessidade de resguardo e proteção.

 A maquinaria escolar constrói corpos disciplinados e para isso ela precisa constituir novos saberes, saberes que passam a ser não só do lar mas  também, ‘saberes escolares’ advindos das ciências humanas.

 Os saberes sobre a infância se tornam possíveis na medida em que As crianças são capturada por estes discursos que a nomeiam e pelas práticas constituídas para institucionalizá-las. Sobre ela emergem diferentes normas e leis baseadas nos saberes das ciências humanas.

A infância passa pelo processo de individuação, de inserção e demarcação de um novo significado para a sociedade. Estas mudanças implicam na constituição de um corpo. Um corpo para ser educado, dirigido e amado. Um corpo que necessita interiorizar, colocar em si a idéia de sujeito autônomo, disciplinado, que pensa com independência e com liberdade.

O corpo da criança se torna visível e sobre ele se constrói novas tecnologias de individuação, através do controle, da regulação, do esquadrinhamento acerca de seu desenvolvimento. Múltiplos dispositivos disciplinares passam a vigiar seus corpos. Essa vigilância não provém de um único ponto, instituição, cultura ou lugar: é exercida por múltiplas materialidades, por múltiplas forças e grupos que regulam e normatizam a existência das crianças.  A partir daí, são criados instrumentos e locais de vigilância da criança. São criadas “ínfimas materialidades” ou dispositivos panópticos para vigiá-la dentre eles as escolas, quartos, espaços, olhares, fichas, exames, provas, livros, todos eles munidos de saberes e ciências.

   A partir do século XVIII, o corpo da criança constitui, portanto, um foco de poder-saber. Emergem uma série de idéias para justificar o atendimento às crianças. Surgem daí, também, justificativas de intervenção dos governos e das instituições para disciplinar as crianças, transformando-as em sujeitos úteis, à sociedade desejada. Tal poder parte do princípio que é mais rentável vigiar do que castigar, normalizar, e fazer produtivo um indivíduo é mais rentável do que segregá-lo ou eliminá-lo.

 Colocar as crianças numa instituição, seria também, mais rentável, útil e econômico para os governos que poderiam por um lado contê-las, disciplina-las e,  por outro, um só educador cuidaria de muitas crianças ao mesmo tempo. O sonho panóptico de Bentham se realiza pois, as crianças passam a ser dia e noite vigiadas e controladas pelo adulto,  assegurada,  assim,  sua boa conduta, saúde, limpeza e o trabalho, a ordem nas instituições que eram antes infectas, corruptas e imorais. Esta realidade está sendo construída dentro da imaginação fértil da burguesia, ela projeta, classifica e resolve quem é anormal, para isso a criança que foge dessa regra precisa ser, “educada, analisada, sua inteligência pode ser controlada, também sua saúde mental, seus cuidados maternais, paternais, sua higiene, seus hábitos, comportamentos e atividades.

 Na sociedade disciplinar o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe, o detalha, o esmiuça.  Tal poder parte do princípio que é mais rentável vigiar do punir, normalizar, regular, governar a si, numa confluência entre as técnicas de dominação  que são exercidas sobre os outros , e as técnicas e as técnicas de si que são exercidas sobre si mesmo. Os saberes produzidos pela modernidade, fabricam também uma infância tida como universal e essencial, ou melhor, ocorre com todas as crianças da mesma maneira. Todas elas se desenvolvem do mesmo jeito em todas as culturas. Ela é vista como o oposto do adulto, no entanto o adulto é a medida para seu crescimento.

 O processo de fabricação dos sujeitos infantis constitui não só a relação com estas tecnologias de governo do outro, mas também do governo de si, ou seja, através do autodisciplinamento e do autogoverno que os sujeitos infantis exercem sobre si mesmos. Os sujeitos infantis são induzidos a julgar-se, com vistas a controlar-se a transformar-se. A infância a partir deste ponto de vista, passa a ser um campo privilegiado de intervenção social, de exercício de poder saber sobre si e sobre o outro. 

Estes são modos de governamentalidade que se vive desde o século XVII, no qual, o poder é compreendido em seu sentido mais amplo, com estruturas do campo possível da ação de outra pessoa, ou seja, dos modos de ação de uns sobre os outros como nos mostra Foucault. É este governo que busca o máximo de resultado, economia e utilidade a partir de uma aplicação mínima de poder. A partir daí, no que cabe à educação das crianças, são as estratégias de governamentalidade produzidas pela instituição escola que produziram as crianças a partir do século XVII e que de alguma forma, funcionam até hoje.

             

As infâncias ninjas ou de rua

 A infância ninja é aquela infância que está à margem de tudo, ou seja, das novas tecnologias, dos games, da internet, do multimídia, são crianças e adolescentes que estão fora das casas, dos produtos de consumo e muitas sobrevivem nos bueiros da vida urbana. Crianças brasileiras – meninos, meninas, adolescentes – que fazem parte do país mais desigual do mundo, segundo os dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 2002, órgão que mede as condições de vida em 173 países. Desigualdade que cotidianamente se naturaliza produzindo a própria exclusão. Exclusão materializada na infância na rua, na prostituição, no trabalho infantil, nas instituições de enclausuramento das crianças que vivem em presídios por suas mães estarem presas, na falta de creches e saúde, etc.

Exemplos de infâncias ninjas podem ser visto em nossa história a partir do século XVIII na roda dos expostos[2] ou nos hospícios para crianças abandonadas. Autores como Koller e Hutz (1996) preferem chamar de crianças em situação de risco àquelas encontradas à margem. Outros afirmam (IMPIZIERI, 1995; CARVALHO, 1999) que situações como as questões da marginalização econômica, social e afetiva acabam produzindo crianças e adolescentes em situação de risco na rua.     

Existem diferentes lugares de infância ninja onde as crianças que dela fazem parte podem ser encontradas, como nos esgotos dos centros urbanos, embaixo de viadutos e pontes. Essas são vistas diariamente nas esquinas com sinaleiras fazendo malabarismos, vendendo coisas, pedindo esmolas, isso certamente marca um tipo de infância inventada como marginal, perigosa e aquela que mesmo sem o adulto para protegê-la e ampará-la, produz um cotidiano que possibilite sua sobrevivência. Para que possam viver o cotidiano, muitas delas exercem atividades ilícitas como roubo, compra, venda e intermediação de drogas. Outras para sobreviverem na rua são expostas à exploração sexual, prostituição e pedofilia. Uma infância diferente que brinca, trabalha e age muitas vezes sem um cuidador adulto. Uma infância que nada mais é do que “uma forma diferente de infância [...] que envolve, ao mesmo tempo, prejuízos e vantagens, exigências e atribuições, sofrimento e satisfação. Embora diferente, essa continua sendo uma infância” (BONAMIGO, 1993, P.149). Infância que como fala o poeta, no sinal fechado vende chiclete, capricha na flanela, tem as pernas tortas e se chama Pelé e que apavora porque consegue viver sem o adulto.

 

As infâncias das tecnologias ou cyber

 O governo das crianças não provém de um único ponto, instituição, cultura ou lugar, ele é exercido por múltiplas forças e grupos que regulam, normatizam e produzem as crianças. Uma das forças que exercem poder sobre os sujeitos infantis hoje é a do consumo e do mercado. Para o mercado é necessário criar produtos que estejam acessível, ao alcance de todos os discursos que ensinam o que o consumidor deve querer, sonhar, desejar consumir. Isso nos interpela de outra forma, como um novo processo constituindo pela disciplinarização de novos saberes, novas maneiras de nos subjetivar governar e controlar a nós mesmos.  Novas tecnologias de sedução, subjetivação e disciplinarização das crianças ou formas de governo são produzidas pelo mercado e perpassadas pela mídia através da publicidade e propaganda.

Daí que, pensar as infâncias pós-modernas é problematizar o próprio conceito de pós-modernidade. Sobre isto Lyon (1996) afirma que pensar o conceito de pós-modernidade é tratar da valiosa problemática “que nos alerta sobre questões chaves relativas às mudanças sociais contemporâneas [...] nos convida a um debate sobre a natureza e a direção das sociedades atuais em um contexto globalizado” (LYON, 1996, p.149)[3]. Pensar acerca da cyber-infância no pós-modernismo é pensar problematizando os efeitos dos fenômenos intelectuais e culturais das infâncias atuais. Ou melhor, pensar sobre estas infâncias é pensar como nos ensina Foucault, pensar diferente do que pensava antes. Pensar a infância naquilo que ela nos incita, nos perturba, nos marca, nos atormenta, nos cativa.

Na atualidade, novos espaços infantis se apresentam ou são reconfigurados e se mostram diferentes dos antigos quartos que apenas buscavam impedir a criança do acesso à sexualidade paterna. Ou seja, para os filhos seria indispensável “um quarto ao lado do quarto dos pais que retire, a uma vigilância oculta, o que ela teria de vexatório se fosse mais aparente, deixando-lhe a eficácia” (DONZELOT, 1986, p. 45). Agora o quarto dos infantis se transforma numa sala informatizada, um quarto/lan house globalizado e cheio de penetrações do mundo via internet ou televisão a cabo.

Estes espaços reconfiguram as infâncias contemporânea é nele que se abrem as comportas do mundo antes secreto do adulto que inventava uma infância moderna preconizada como puramente ingênua e protegida. Agora é nos lan house  informatizados que se produzem as infâncias globalizadas e este é o espaço da cyber-infância, ou seja, da infância on-line, da infância daqueles que estão conectados a esfera digital dos computadores, da internet, dos games, do mouse, do self-service, do controle-remoto, do joysticks, do xbox, do MP3, do Ipod, do zapping. Esta é a infância da multimídia e das novas tecnologias.

No entanto, mesmo sabendo que as crianças possam estar “seguras” nos seus quartos lan house “não se pode abandonar os filhos na frente do computador do videogame ou da TV. Cabe aos pais cuidar da agenda dos filhos pequenos, incluir atividades físicas e jamais deixar o filho perder o contato “olho no olho” com o amigo  (não vale se for por uma web câmera). É frente a frente, no contato físico que as diferenças são resolvidas. Aprende-se a argumentar, a sustentar a defesa. Descobre-se que o mundo não é só tecnologia” (DORNELLES, 2006).

Infâncias paradoxais que emergem de narrativas que impõem em muitos momentos um duplo sentimento que desliza entre a piedade, a rejeição, o abandono e a sedução.  Discurso que produz a infância vítima e vitimada. A infância caçadora, a perseguidora das gangues e a infância caçada. A infância de Birmingham e a de Liverpool. As meninas da noite e a menina de Denver. A menina do subúrbio e as meninas da Paulista. As infâncias violentas e as violentadas. As infâncias dos shoppings e games e a da pelada de rua e do jogo de taco. A infância do adolescente de Cuers que possibilitou que pela primeira vez, uma criança entrasse na lista dos serial killers. A infância de meninos e meninas da Três Figueiras e os meninos e meninas da FASE. A infância da AIDS e a infância-clone. Infância dos meninos de Passo Fundo. Infância de meninos e meninas ingênuos/as e puros/as e ao mesmo tempo sensuais e erotizados/as. Infâncias produzidas pelos voyers ou pelos pedófilos da internet. É nesta trama discursiva e paradoxal que, vivem e co(vivem) as diferentes infâncias fabricadas pela sociedade globalizada, às quais temos ‘medo’ de lidar, talvez por ainda não se ter produzido saberes e poderes suficientes para controlá-las e governá-la (DORNELLES, 2005).

 

Referências Bibliográficas:

 ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

BONAMIGO, L.R: KOLLER, S.H . Opinião de crianças quanto à influência da esteriotipia sexual dos brinquedos. Estudos de Psicologia. 1993.

BUJES, Maria Isabel. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

CARVALHO, D.B. A construção da categoria “criança e adolescente em situação de rua “na história social da infância e no âmbito do Projeto Brasília”. In: D.B.B. Carvalho; M.T. Silva (org), Prevenindo a drogadição entre crianças e adolescentes em situação de rua: a experiência do Prodequi. Brasília: MS/COSAM; UnB/PRODEQUI; UNDCP”.

DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, 1986.

DORNELLES, Leni Vieira. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes, 2005.

______. Cyberinfância. In: Revista Crescer. Mês de Março, Ano 2006.

ESCHILETTI, Homero. Filhos de nesuno. 2005

FOUCAULT, História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997.

IMPELIZIERI, f. Criança de rua e ONGs no Rio: estudo do atendimento não-governamental. Rio de janeiro: Amais. 1995.

KOLLER; HUTZ, C.S. Meninos e meninas em situação de rua: dinâmica, diversidade e definição. Coletâneas da ANPEPP, 1 (12). 1996.

LYON, David. Postmodernidad. Madrid: Alianza. 1996.



[1] Leni Vieira Dornelles é doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora da Faculdade de Educação. Atualmente exerce o cargo de vice-diretora da FACED e coordena o Curso de Especialização em Estudos em Educação Infantil e 1º Ano do Ensino Fundamental FACED/UFRGS.

[2] Ler: ESCHILETTI e DORNELLES, Leni Vieira. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes, 2005.

[3] Tradução livre.