Ao discorrer sobre s gênese do pensamento antropológico Laplantine, neste capítulo, pondera sobre os relatos e discussões ligadas historicamente ao descobrimento do Novo Mundo (América, Ásia e Africa). São as observações de viajantes ou missionários que constituem os primórdios da Antropologia, ou a "pré-antropologia".
Para o autor a Antropologia tem sua origem justamente no momento em que os "descobridores" passam a se deparar com o Outro, o desconhecido, elaborarando questões a partir deste confronto: "aqueles que acabaram de serem descobertos pertencem a humanidade?
Começa assim a se delinear, pelo menos, duas ideologias antagônicas sobre o Outro:
1) a recusa do estranho: apreendida pelo que falta no Outro e pela boa consciência de si;
2) a fascinação pelo estranho – apreendida pela má consciência sobre si e sua própria sociedade.
Essas ideologias são colocadas pelo autor em dois tipos de discursos:
Falava-se, nessa ideologia, dos "outros" descobertos, como "naturais" ou "selvagens" (seres da floresta) opondo-se a humanidade e parecendo como aberrações: são "sem religião, sem moral, sem leis"; "eles estão nus"; "comem carne crua"; "falam uma língua inteligível".
"As pessoas desse país, por sua natureza, são tão ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, de mole constância e firmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para as grandes, abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfície da Terra".
Escreve na mesma época (1555) Oviedo em sua História das índias.
"Deve existir, na organização dos americanos, uma causa qualquer que embrutece sua sensibilidade e seu espírito. A qualidade do clima, a grosseria de seus humores, o vício radical do sangue, a constituição de seu temperamento excessivamente fleumático podem ter diminuído o tom e o saracoteio dos nervos desses homens embrutecidos".
(Cornelius de Pauw, publicado em 1774).
No século XVIII, as enciclopédias, em alusão a uma divisão da civilização e da barbárie, mostram o mapa mundial separado em hemisférios, onde "a natureza tirou tudo de um hemisfério deste globo para dá-lo ao outro".
Laplantine lembra que nesta ideologia sobre o Outro os termos da atribuição permanecem os mesmos, assim como o sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natural). Porém, desta vez, o que era apreendido como "um menos" agora se torna "um mais". Ou seja, o selvagem, mesmo sem clero, sem leis, sem tecnologia, passa a ser valorizado, suas ausências são vistas como vantagens.
Cristóvão Colombo, apontando no Caribe, descobre, ele também o paraíso:
"Eles são muito mansos e ignorantes do que é o mal, eles não sabem se matar uns aos outros (...) Eu não penso que haja no mundo homens melhores, como também não há terra melhor".
Do lado dos livres pensadores, é o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan:
"Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem prisões e sem torturas passam a vida na doçura, na tranquilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses".
Nas palavras do autor "a imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) não parou, portanto, de oscilar entre os polos de um verdadeiro Movimento pendular" (p. 51). Pensou-se alternadamente que o selvagem:
• levava uma existência infeliz e miserável, ou, pelo contrário, vivia num estado de beatitude, adquirindo sem esforços os produtos maravilhosos da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da indústria;
• era trabalhador e corajoso, ou essencialmente preguiçoso;
• não tinha alma e não acreditava em nenhum Deus, ou era profundamente religioso;
• vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia;
• era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, até e inclusive suas próprias mulheres;
• era admiravelmente bonito, ou feio.
Idependente da ideologia, há uma alteridade sendo construída. O que Lampantine quer dizer é que o outro, em ambos os casos, "não é considerado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele". Ou seja, há um interesse nesse "outro" que não o leva me conta, ele é muitas vezes, apenas objeto-pretexto para à todo tipo de exploração ou à emoção estética.
LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007. 205p.