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Imagens como dispositivo para acessar cotidianos: a via de mão-dupla na geração da imagem fotográfica

Figura 1 -Fotografia de Lucas Lucas - Flickr
Resta saber se no verbalizável há indícios do indizível, se na fala há evidencias do silêncio. Ou se no visível há indícios do invisível.
(MARTINS, 2013, p.27)

Sem a pretensão de entrar em um debate aprofundado do ponto de vista teórico ou conceitual acerca de uma polarização entre a fotografia como evidência ou como a construção do outro, trazemos aqui um debate inicial acerca da criação fotográfica do Outro. No sentido de fazer a reflexão de que, nas narrativas visuais que falam do outro, o real é o que consideramos como objetivo da subjetividade, o que é recortado pelo fotógrafo e fotografado. A fotografia é um dos componentes do funcionamento de uma sociedade visual e dependente da imagem, ela é a representação social e memória de fragmentos, “a fotografia tece uma história” (MARTINS, 2013, p.37). Porém, a construção de sentido enfrenta um desafio, deixar de ser um espaço em branco para ser algo que tenha significação, que possa ser entendido e assimilado, para então cumprir sua função de colocar-se para o juízo e crítica de outrem (ACHUTTI, 2004).

Assim como a linguagem escrita, no caso da linguagem imagética são os seres humanos que fotografam ou escrevem, e todos são diferentes uns dos outros, evoluem em contextos e em épocas muito distintas, de forma que, isto além de nos dizer muito sobre a escolha dos recortes para a construção da narrativa imagética, nos indica os eixos escolhidos para se compor a interpretação que se tem de determinado fato. Consequentemente, o recorte que se faz a partir do momento da exposição escolhido e as modelagens do instante são inerentes à fotografia e devem ser reconhecidos e respeitados enquanto a contextualização da ação e da assimilação que se faz do tempo, do espaço e do que mais se fizer importante para a interpretação. Assim, a fotografia ao longo do tempo se tornou uma linguagem, não é o resultado de uma prática ingênua, mas o resultado de um ato intencional que carrega consigo as marcas de seu autor (ACHUTTI, 2004).

Em situações cotidianas o fotografado se apruma e se arruma para posar para o fotógrafo, especialmente se aquele que está por trás da lente da câmera for um estranho, haja vista que, ali se constituirá o registro visual daquilo que ele é, ou daquilo que ele quer ser. Por exemplo, o retrato fotográfico que se empenha a retratar situações como o casamento, batizado ou outras tantas situações do convívio social registra uma concepção de vida verdadeira e, portanto, a evidência de um imaginário que quer expressar aquilo que o fotografado quer externar (MARTINS, 2013).

O cuidado na apresentação pessoal do fotografado é a racionalização por meio de vestimentas da importância que tem o fazer-se compreender pelo expectador da fotografia e evitar que a vestimenta cause conflito entre o que se quer expressar e o que vai ser decodificado da fotografia. Assim, os instrumentos de ficção da imagem e da autoimagem como a maquiagem e as vestimentas podem oferecer revelações importantes do ponto de vista das análises antropológicas e sociológicas. Como na análise das famosas fotografias de August Sander de jovens camponeses alemães em trajes domingueiros, ou dos jovens estudantes operários. As análises acerca das fotografias do referido fotógrafo nos apontam para o desencontro entre o corpo dos jovens e os trajes, como se o corpo desse um depoimento acerca da relação entre a classe social e o imaginário de classe (MARTINS, 2013). O outro pensado nesta perspectiva é sujeito na produção das fotografias, exerce determinada autonomia no deseja deixar fotografar, o que apresenta é intencional.

Figura 2 - August SANDER (1876-1964), Alemanha. “Jovens camponeses”. Antlitz der Zeit – Rosto de uma época, 1929.

Figura 3 - August SANDER (1876-1964), Alemanha. “Estudantes – operários”. Antlitz der Zeit – Rosto de uma época, 1929.

Já o Outro, nas imagens abaixo, pode retratar a construção de uma narrativa que discutiremos no item a seguir sobre a banalidade do mal diante da dor do Outro.



A desnaturalização da banalidade do mal diante da dor do Outro: a construção de narrativas imagéticas

Figura 4 - Fotografia de Odair Leal - Folhapress

Há situações em que o Outro, o homem comum, não se usa de maquiagens, vestimentas ou modificações de seu cenário, não no sentido de ser alvo de um “paparazzo”, enquanto o olhar do fotógrafo enquanto intromissão, mas aquelas situações que rompem o costumeiro e repetitivo da captação fotográfica, mas que dizem o que somos também. Estas situações oferecem ao observador ou pesquisador ângulos de observação que constroem uma consciência visual visibilizada e difundida pela fotografia. Nisso emerge uma questão relevante, o quanto se dispõe de recursos de conhecimentos suficientes para registrar a dor e o sofrimento do outro em sua complexa realidade (MARTINS, 2013; SONTAG, 2003).

A construção de narrativas imagéticas tem contribuído para a banalização de situações humanas inaceitáveis, ou seja, com a banalidade do mal. Por banalidade do mal, Hannah Arendt refere-se na tese exposta no livro Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal (1963) ao mal praticado no cotidiano como um ato qualquer.

Márcia Tiburi, ao refletir sobre a banalidade do mal expõe que “a banalidade do mal é, portanto, uma característica de uma cultura carente de pensamento crítico, em que qualquer um – seja judeu, cristão, alemão, brasileiro, mulher, homem, não importa – pode exercer a negação do outro e de si mesmo. Em um país como o Brasil, em que a banalidade do mal realiza-se na corrupção autorizada, na homofobia, no consumismo e no assassinato de todos aqueles que não têm poder, seja Amarildo de Souza, seja Celso Rodrigues Guarani–Kaiowá, uma parada para pensar pode significar o bom começo de um crime a menos na sociedade e no Estado transformados em máquina mortífera”.

Assim, a construção da narrativa imagética, tal qual a da narrativa textual, sempre parte da perspectiva de quem recorta a cena, de quem a apresenta. Para ultrapassar, desnaturalizar a banalidade do mal, há a exigência de termos recursos que vão além daqueles circunscritos a tecnologia dura da câmera fotográfica; exige a sensibilidade de quem constrói a narrativa e de quem lê a narrativa, uma sensibilidade informada, contextualizada, mesmo que o sujeito do ato fotográfico não esteja presente na narrativa imagética.Por exemplo, em ensaio fotográfico, José de Souza Martins, retrata a invisibilidade que se torna visível pela evidência visual do ato fotográfico, o ausente se fazendo presente pelas pinturas, escritas, objetos abandonados ou desenhos feitos por quem esteve no Carandiru antes de sua demolição expressos no ensaio fotográfico Carandiru: a presença do ausente (2002). Nessa narrativa imagética, é impossível não pensar no sujeito, que mesmo estando ausente das imagens, se faz presente e nos faz desnaturalizar a banalidade do mal.

Figura 5 - Miragem, José de Souza Martins, 2002.

Figura 6 - Esclarecimentos, José de Souza Martins, 2002.

Figura 7 - Censo dos Esquecidos, José de Souza Martins, 2002.

Figura 8 - Fim de Programa, José de Souza Martins, 2002.

Em outros exemplos, a fotografia contribuiu em muito para a consciência que temos dos horrores da guerra e, também, na criação de uma consciência de paz (SONTAG, 2003; MARTINS, 2013). a memória que temos sobre o tema que a fotografia nos suscita altera a imagem de acordo com o que nossas lembranças emanam. “Algo se torna real – para quem está longe, acompanhando o fato em forma de “notícia” – ao ser fotografado. Mas, não raro, uma catástrofe vivenciada se assemelhará, de maneira misteriosa, à sua representação” (SONTAG, 2003, p.22 -23). Neste sentido, o que vemos no cotidiano é mediatizado por alguma tecnologia, além do fato de vermos apenas aquilo que precisamos ver. “Atravessamos nossos dias com viseiras, observando somente uma fração do que nos rodeia. E quando observamos criticamente, é quase sempre com o auxílio de alguma tecnologia” (Collier Jr, 1973, p.3).

Como produto das diferentes construções está nossa produção de sentidos sobre as diferentes visualidades. A visualidade que detemos sobre determinado fato nos conduz quase que imediatamente a sensações, impressões e lembranças relacionadas a determinadas situações. Assim representa a fotografia icônica do final da Guerra do Vietnã de uma menina vietnamita correndo nua após o bombardeio de sua vila, fotografia de Nick Ut, esta imagem já tem mais de 40 anos de sua captação e ainda nos mobiliza para os horrores da guerra. Na imagem a menina está correndo em direção a câmera para fugir de um ataque norte-americano durante a Guerra do Vietnã.

Figura 9 - menina vietnamita correndo nua após o bombardeio de sua vila.

A seguir uma célebre fotografia de Elliott Erwitt que retrata o racismo nos Estados Unidos na década de 1950. O retrato de uma época que ainda se faz presente sob outras roupagens causa indignação ao mostrar os bebedouros separados para brancos e negros.

Figura 10 - Fotografia de Elliott Erwitt, 1950, USA. North Carolina. 1950.

A fotografia anterior constrói uma narrativa visual sobre determinada situação de modo a conduzir imediatamente o expectador a diversas reflexões sobre segregação, preconceito e racismo. Por outro lado, a facilidade com que se tem acesso às imagens provenientes de conflitos fez até a guerra se tornar banal, como as imagens que a retratam por meio de fotografias ou vídeos em tempo real. Estas situações perderam sua excepcionalidade visual para o expectador, uma vez que nos habituamos a ver determinadas imagens que tratam de momentos cadentes de conflitos.

Figura 11 - Repórter fotográfico acompanhando manifestantes do Movimento Passe-Livre.

Nas palavras da fotojornalista Márcia Folleto em um documentário denominado “Abaixando a Máquina”, realizado sob direção de Guillermo Planel e Renato de Paula, ela diz que o cotidiano do fotógrafo é muito sofrido, ele fica sob impacto do que se vê, não como se desvencilhar disso. Este é um relato que nos remete a consideração que a situação que vemos se desfaz, mas a imagem não, assim como os enlaces que constroem a miséria, a fome e a violência.

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços, 1989, p. 42.
https://www.youtube.com/watch?v=_wy_p1DtyeU