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Cubismo e guerra

Cubismo: múltiplas dimensões

André Salmon: Os pintores da guerra (1920) [1]

Tenho como herança de um avô meu um passaporte. Ele é datado da bela época romântica. Meu avô pintava carneiros e suas guardadoras; ele conservou Versaillhes, onde reuniu, para a segunda República, retratos dos Convencionários que a terceira República se apressa em dispersar, de tal modo que não encontramos mais nenhum hoje em dia. No passaporte de meu avô se lê: pintor de batalhas. Capricho de artista romântico? Ideia de gendarme que saiu da grande armada? Quem o saberia!

Nós, infelizmente, colocamos outra vez os passaportes na moda. Os pintores de batalha conhecerão o mesmo favor? Os livros de guerra, romances ou diários de viagem não são obras sintéticas, visões de conjunto. É a história de uma bateria ou o diário de um destacamento, é a epopeia de um batalhão. O mesmo se dá com a produção dos pintores combatentes, pois que igualmente não se saberia dizer nada sobre os “relatórios falsificados” dos pintores oficiais em missão nos exércitos. Os melhores artistas, entre os combatentes, foram, incontestavelmente, os colaboradores do Crapouillot, esse Chat Noir da epopeia.

Esses também nos apresentaram ângulos de batalha, instantes da vida nas trincheiras. Um deles marcou o que desejava empreender para além disso, quero falar de Luc-Albert Moreau. Fraye, um recém-chegado, segue com alegria caminhos paralelos àqueles escolhidos por Luc-Albert Moreau; mas tampouco ele é um pintor de batalhas.

Haveria por parte de um escritor paciente, de idade madura, que a vida cruel de nosso tempo não arrebataria muito rudemente, um senhor de óculos, lupa, fichas e biblioteca, que teria permanecido clarividente e sensível, um precioso estudo a nos legar sobre a paisagem na pintura militar. Nesses tipos de obras, o convencional não é por completo a convenção costumeira. Evitemos esquecer que não são os artistas, mas os generais, que então escolhem a paisagem. Na Batalha de Wagram, de Horace Vernet, é Napoleão e não Vernet que estabelece o primeiro plano. Baudelaire, profundo crítico de arte, escreve sobre Vernet, que ele com justiça odiava: “Ele faz uns Meissonier grandes como o mundo” (Salão de 1846). Mas Napoleão também!... E Baudelaire não estimava mais Napoleão do que Horace Vernet.

O que precede explica por que, ainda longo tempo depois da época da influência “bonap... artista”, reencontramos nos quadros de batalhas, seja o vau, seja o cemitério de Eylau, seja o “pequeno moinho de vento aqui presente”, no qual está Monsieuye Ubu, em geral cuidadoso em conservar um chefe para seus bravos palotins.

A paisagem se transforma apenas com a interpretação dos dias terríveis do inverno em 1870-1871. Pintor vulgar, Alphonse de Neuville matou, perdeu o que ele parece ter justamente, e talvez amorosamente entrevisto: a decoração enviesada dos cafés dançantes ao ar livre, os campos que ainda florescem na cidade, a gritante poesia dos arredores de Paris no horror da carnificina. Isso foi expresso ao menos uma vez, em uma tela de pequenas dimensões, e pouco ou nada conhecida, de Courbet: dois soldados móveis em uma trincheira na floresta de Meudon.

Ora, em 1914-1918, não há mais batalha. La Marne é dez batalhas incertas e Verdun é trinta, das quais nenhuma é pitoresca. Mas no front moderno, e isso me deslumbrou desde o primeiro dia, é a paisagem que domina tudo. E qual é essa paisagem? Ela se reduz ao essencial da própria linha de fogo, à triste linha das trincheiras com suas minas, seus postes de escuta, seus dutos, seus protetores contra estilhaços. O campanário abatido, a torre de vigia truncada e a catedral atingida no coração, ela mesma, ali não serve absolutamente para nada.

É o que sentiu profundamente Luc-Albert Moreau a princípio, e depois Fraye, que a ele deve seus meios de expressão, mas que parece ter levado mais longe suas pesquisas, sem no entanto nos ter dado nada de tão completo como o que conhecemos de seu líder.

Fraye é muito jovem. Não estando ainda de posse de meios pessoais, ele nos deixa no entanto surpreender uma personalidade real, feita de sensibilidade comedida e de cultura harmoniosa. Como La Fresnay, como Luc-Albert Moreau, como André Mare (que também descobriu a verdadeira face da guerra moderna), Fraye, menos abrandado pelas provações do que seus predecessores, deve ao iniciador Picasso. A cubismo-escola é uma instituição da qual Picasso deve aceitar, mesmo assim, um pouco de benefício. Ele não pode se furtar à toda honra de ter, nossos sábios mais raros que os escutaram sem desejar a escravidão nem querer lhe roubar a coroa, ditado o desgosto pelo amorfo pós-impressionista e o respeito à organização plástica, organização tomada aqui segundo seu valor biológico.Um soldado espiritual escreveu no extinto Bulletin des Armées: “É no Salão de 1834 que Raffet produziu o tipo imortal do grognard;[2] irei ver o Poilu [3] no Salão de 1944”.

Não teremos de esperar tanto tempo para reconhecer, em obras duráveis, a paisagem da linha de fogo, pressentida, poderíamos acreditar, pela geração que tão esplendidamente se sacrificou, sem efeitos, sem pitoresco, segundo a estética moderna!Depois de terem aparecido minhas primeiras notas sobre a pintura de guerra, lançadas ao acaso das exposições e dos pequenos salões, Luc-Albert Moreau me escreveu do hospital onde havia sido internado, o corpo crivado de estilhaços:

“Nossa tábua de salvação eram essas notas de guerra, tão rápidas, que não incorriam no pitoresco e no gênero. Muito justamente, você escrevia que as imagens do front, para ter qualquer interesse, devem ser visões de conjunto, e visar à obra sintética. Nossos caros pintores em missão no exército se atiraram às ruínas e vilarejos mutilados e isso é bem pouco o “front”, apenas o testemunho de uma mentalidade romântica.

“A guerra faz antes pensar em um filme de cinema ou em uma infinidade de elementos e de espetáculos que se justapõem para criar uma imagem”.

Sim, nossos Flameng e outros, para não falar nos Scott, foram verdadeiramente os G. V. C. [Guardas das Vias de Comunicação] do mais vão romantismo, decanos de uma arte de segunda linha. Luc-Albert Moreau está correto e é um achado de sua pena essa aproximação eloquente de palavras: “infinidade de elementos e de espetáculos!”. Construiríamos sobre isso uma doutrina sólida.

Essas últimas linhas e a obra de Luc-Albert Moreau durante a guerra, em absoluta conformidade com a obra que se pode datar de 1905 a 1914, obrigaram o honnête homme [homem culto] a uma revisão de julgamento. Não se disse sobre a arte de Moreau que ele era baudelairiano? Isso era verdade, e continua a ser se admitimos, bastante razoavelmente, que a dita relação de elementos e de espetáculos corresponde ao mais íntimo do verdadeiro Baudelaire em reação contra a dispersão romântica; o epíteto é mau se aproximamos Moreau do Baudelaire da lenda, inclinado a nos introduzir, fraudulentamente, nos piores chalands das piores casas, em uma nova Chambre double na qual a alcova se transforma em uma parte de anfiteatro.

Se esse pintor não é casto, testemunha boa saúde. Ele não se embarrassa de modo algum com teologia e literatura, a não ser na medida que é natural a um artista letrado. Se ele faz aflorar a perversidade é muito menos pelo satanismo do que pelo efeito de uma ironia muito humana, que não chega até a misoginia nesse pintor do nu feminino. Sua inquietude por um tipo de androginia não é nada além de perfeitamente clássica, e se queremos ser tão breves sobre esse ponto é por pavor de parecermos pedantes. Permanecemos aqui entre os vivos e vamos somente ao museu.

Enfim, se é preciso a respeito de Luc-Albert Moreau citar mesmo assim e uma vez Baudelaire, será para interrogar o crítico impaciente de saúde, de verdade, de metiê, aquele que escreveu:“O nu, essa coisa tão cara aos artistas, esse elemento necessário de sucesso, é tão frequente e tão necessário quanto na vida antiga: no leito, no banho, no anfiteatro (Baudelaire hoje em dia diria ao teatro, simplesmente). Os meios e os motivos da pintura são igualmente abundantes e variados; mas há um elemento novo que é a beleza moderna”.[4]

Quando tantos pintores não ousarem mais, enganados pela boa ou má qualidade de uma tal arte, pelas bobagens dos acadêmicos com pretensões realistas, contadores de anedotas baixos; quando pintores tão fortemente dotados como Jean Puy, paralisados por um medo amorfo, usavam seu talento nos estudos de nu no ateliê, que não poderiam ser quadros, Luc-Albert Moreau teve o mérito de ser o primeiro a reencontrar a verdade baudelairiana.

Luc-Albert Moreau: Le raid aérien (1914)

uc-Albert Moreau: O ataque (desenho).

1916.

Musée de la Guerre, Paris.

Luc-Albert Moreau: Le trou d’obus (desenho)

1916

Musée de la Guerre, Paris

Luc-Albert Moreau: Os combatentes

1919

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[1] Fonte: SALMON, André. Des peintres de la Guerre. In : _____. L’art vivant. 6. ed. Paris: Les Éditions G. crés et Cie., 1920. p. 179-186. Trad. Daniela Kern. Imagens extraídas de: Luc-Albert Moreau. Paris: Gaston Gallimard, 1920. (Col. Les Peintres Français Noveaux n. 3) Disponível em: https://ia600502.us.archive.org/13/items/lucalbertmoreau00more/lucalbertmoreau00more.pdf

[2] Soldados que pertenciam à velha guarda, sob as ordens de Napoleão. N. T.

[3] Gíria da I Guerra Mundial. O termo designava os soldados franceses “cabeludos”. N. T.

[4] Tais linhas de Baudelaire eram precedidas por essa heroica declaração: “A vida parisiense é fecunda em sujets poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos abreuve como a atmosfera; mas nós não o vemos”.