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Cubismo e guerra

Cubismo: múltiplas dimensões

E. Hemingway: Um voo de Paris para Estrasburgo (1922) [1]

ESTRASBURGO, FRANÇA. – Estamos sentados no mais barato de todos os restaurantes baratos que barateiam aquela mesma rua barata e barulhenta, a Rue des Petits Champs, em Paris.

Somos a sra. [Hadley] Hemingway, William E. Nash, o irmãozinho do sr. Nash, e eu. O sr. Nash anunciou, em algum momento entre a lagosta e o linguado frito, que ele iria até Munique no dia seguinte e que estava planejando voar de Paris para Estrasburgo. A sra. Hemingway ponderou isso até o aparecimento de rins salteados com champignons, quando então perguntou, “Por que nós nunca voamos para lugar algum? Porque todos os outros estão sempre voando e nós sempre ficamos em casa?”

Sendo essa uma das questões que não podem ser respondidas com palavras, fui com o sr. Nash ao escritório da companhia aérea franco-romena e comprei dois tíquetes, à metada do preço para jornalistas, por 120 francos, válidos para um voo entre Paris e Estrasburgo. A viagem é de dez horas e meia pelo melhor trem expresso, e leva duas horas e meia em um avião.

Meu desânimo natural diante da perspectiva de voar, tendo voado uma vez, se aprofundou quando soube que voaríamos sobre as montanhas Vosges e que teríamos de estar no escritório da companhia, próximo à Avenue de l’Opéra, às cinco da manhã. A palavra Romeno no nome da empresa não era encorajadora, mas o funcionário atrás do guichê me garantiu que não havia pilotos romenos.

Às cinco da manhã do dia seguinte estávamos no escritório. Tivemos de nos levantar às quatro, fazermos a mala e nos vestir e acordar o proprietário do único táxi na vizinhança dando pancadas em sua porta no escuro, a fim de conseguir isso. O proprietário aumenta seu rendimento trabalhando também às noites como tocador de acordeão em um bal musette e foi preciso um duro golpe para acordá-lo.

Enquanto ele trocava o pneu esperávamos na rua e brincávamos com o rapaz que cuidava da charcuterie da esquina e que havia saído para encontrar o leiteiro. O rapaz do mercado nos fez alguns sanduíches, nos disse que fora piloto durante a guerra, e me perguntou sobre a primeira corrida em Enghien. O motorista de táxi nos convidou a entrar em sua casa para beber café, tendo o cuidado de perguntar se preferíamos vinho branco, e com o café nos aquecendo, e devorando os sanduíches de patê, nós íamos de carro, confusos, pelas ruas vazias, cinzas de Paris no início da manhã.

Os Nashes estavam nos esperando no escritório, depois de terem carregado duas pesadas malas por algumas milhas a pé devido ao fato de não conhecerem pessoalmente nenhum motorista de táxi. Nós quatro rumamos para Le Bourget, o mais feio passeio em Paris, em uma grande limousine, e tomamos um pouco mais de café ali, em um galpão fora do campo de voo. Um francês em um suéter gorduroso tomou nossos tíquetes, os rasgou em dois e nos disse que iríamos em dois aviões diferentes. Fora da janela do galpão podíamos vê-los posicionados, pequenos, pintados de prata, tesos e brilhantes sob o sol do começo da manhã, em frente ao aeródromo. Éramos os únicos passageiros.

Nossa mala foi alojada a bordo sob um banco junto ao lugar do piloto. Subimos um par de degraus em uma pequena cabine asfixiante e o mecânico nos alcançou algum algodão para nossos ouvidos e trancou a porta. O piloto se acomodou em seu assento, atrás da cabina fechada onde sentamos, um mecânico empurrou a hélice e a máquina começou a rugir. Analisei o piloto. Ele era um homenzinho pequeno, seu boné na parte de trás da cabeça, vestindo um casaco de pele de carneiro manchado de óleo e grandes luvas. Então o avião começou a se mover pelo chão, pulando como uma motocicleta, e então lentamente se ergueu no ar.

Fomos conduzidos quase em linha reta a leste de Paris, subindo no ar como se estivéssemos sentados dentro de um barco que estivesse sendo carregado por algum gigante, e o solo começou a se nivelar abaixo de nós. Ele se transformou em quadrados marrons, quadrados amarelos, quadrados verdes e grandes manchas verdes planas onde havia uma floresta. Comecei a entender a pintura cubista.

Às vezes descíamos bastante devagar e podíamos ver ciclistas na estrada que pareciam com centavos rolando por uma estreita faixa branca. Em outras vezes podíamos nos elevar e toda a paisagem se contraía. Estávamos sempre ligados a um esfumaçado horizonte púrpura que fazia toda a terra parecer plana e desinteressante. E sempre havia o forte, desligado, rugido, a portinhola através da qual olhar, e atrás de nós a cabine aberta com a ponte do amplo nariz do piloto e seu casaco de pele de carneiro com suas luvas sujas movendo o joystick de um lado para o outro ou para cima e para baixo.

Passamos sobre grandes florestas, que pareciam tão macias como o veludo; passamos sobre Bar le Duc e Nancy, cidades cinza com telhados vermelhos, sobre St. Mihiel e o front e um campo aberto onde pude ver as velhas trincheiras ziguezagueando através de um campo marcado por buracos de projéteis. Eu gritei com a sra. Hemingway para que olhasse para fora, mas ela não parecia me ouvir. Seu queixo estava afundado na gola de seu novo casaco de pele, que ela quis batizar com um voo de avião. Ela estava em pleno sono. Cinco da manhã havia sido demais.

Depois de havermos passado pelo velho front de 1918 enfrentamos uma tempestade que fez o piloto voar próximo ao solo e seguimos um canal que podíamos ver abaixo de nós através da chuva. Então, após um longo trecho de território plano, tedioso, atravessamos os contrafortes do Vosges, que davam a impressão de se avolumar para nos encontrar e de se mover sobre as montanhas cobertas de florestas, que pareciam como se tivessem crescido e diminuido sob o avião na chuva enevoada.

O avião se dirigiu para acima, afastando-se da tempestade, rumo à brilhante luz do sol, e vimos à nossa direita a tira do Reno, lisa, cercada de árvores, lamacenta. Subimos mais alto, fizemos um longo giro à esquerda e uma bela e longa descida que colocou nossos corações em nossas bocas, como se estivéssemos caindo em um elevador, e então era apenas como se estivéssemos acima do solo de novo, nos movendo para o alto rapidamente, e então mergulhamos em outra descida e nossas rodas tocaram, pularam, e então estávamos rumorejando ao longo de um suave campo de pouso até o hangar, como qualquer motocicleta.

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[1] Fonte: HEMINGWAY, Ernest. A Paris-to-Strasbourg flight. The Toronto Daily Star. September 9, 1922 [trecho]. Trad. Daniela Kern.