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Cubismo e primitivismo

Cubismo: múltiplas dimensões

Introdução

O “primitivismo” é um fenômeno que historiadores das ideias como Arthur Lovejoy e George Boas detectaram em atuação já na antiguidade clássica. É também um fenômeno complexo e de ampla cobertura e recorrência, daí não ser estranho o fato de Lovejoy e Boas, dos cinco volumes sobre o tema inicialmente projetados, terem conseguido concluir apenas um, Primitivism and related ideas in antiquity (1935). O primitivismo que tão fortemente marcará algumas das vanguardas europeias tem muitas vertentes, e na Europa do século XIX será bastante privilegiado pelo movimento romântico. Émile Soldi (1846-1906), gravador e artista francês que ganhou um Prix de Rome de gravura em 1869, era discípulo de Viollet-LeDuc, o restaurador de Notre Dame de Paris, e um ativo defensor da criação de museus para abrigar obras que não encontravam espaço no Louvre, justamente por pertencerem às “artes incompreendidas”. É assim que escreve sobre arte persa, Khmer, pré-colombiana (como no texto aqui disponível, As artes antigas da América, Peru, México e Guatemala) e arte egípcia. É assim que defende também a transformação do Trocadéro em museu etnológico, após o encerramento do evento para o qual fora construído, a Exposição Universal de 1878, sediada em Paris.

Se o Louvre teve imensa importância na formação do gosto dos realistas como Courbet, que ali tiveram acesso à pintura de gênero holandesa e espanhola, por exemplo, contrastantes se comparadas às pinturas históricas de tendência italianizante, pode-se dizer que o Trocadéro abrirá os olhos de mais de uma geração de artistas ao “exotismo” e à economia formal das obras “primitivas”. Como bem lembra Gombrich em The preference for the primitive, faz parte das narrativas pessoais de Picasso a descrição do momento em que teve a epifania que o conduziria ao cubismo, justamente decorrência de uma visita ao Trocadéro.

Entre 1908 e 1909 a distinção entre cubistas e fauvistas ainda não parecia tão clara, e Gelett Burgess, escritor e cartunista americano, entrevista e fotografa os principais representantes do movimento de vanguarda em Paris, e publica em 1910 o primeiro artigo sobre eles a aparecer nos Estados Unidos, Os homens selvagens em Paris. Trata-se de um documento precioso para percebermos o modo como se deu a recepção inicial desse movimento, e como o primitivismo presente nas obras desses artistas era algo que se destacava junto ao público da época. Ele é brevemente abordado por Mark Antliff e Patricia Leighten em Cubism and Culture.

O primitivismo também tem seu papel no texto de um artista vanguardista como Metzinger, Nota sobre a pintura, que recorre a exemplos de várias culturas nos argumentos que utiliza em defesa da nova visão artística proposta pelo cubismo.

Longe de esgotar o assunto, os três documentos apresentados aqui permitem um olhar de relance sobre a incidência do primitivismo na arte europeia e sobre como esse contato com culturas não ocidentais atingiu e acabou por influenciar a reformulação de velhas questões artísticas, como a conceituação da beleza.