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Cubismo e primitivismo

Cubismo: múltiplas dimensões

Jean Metzinger: Notas sobre a pintura (1910) [1]

Há alguma obra, entre as mais atuais da pintura e da escultura que, em segredo, não obedeça ao ritmo grego?

Nada, dos Primitivos a Cézanne, quebra definitivamente a cadeia de variações associada ao tema helênico. Vejo hoje os revoltados de ontem se prosternarem maquinalmente diante dos baixos-relevos de Eleusis. Góticos, românticos, impressionistas, a velha medida triunfou sobre vossas louváveis arritmias; no entanto, vosso trabalho não foi em vão: ele coloca em nós a presciência de um outro ritmo.

Para nós, os gregos inventaram a forma humana; nós devemos reinventá-la por meio de outros.

Não se trata portanto, aqui, de um “movimento” parcial que se vale de licenças conhecidas; interpretação, transposição, etc., meias-medidas! mas de uma libertação fundamental.

Já despertam coragens conscientes, eis os pintores: Picasso, Braque, Delaunay, Le Fauconnier. Unicamente pintores, eles não iluminam os noumenos à moda dos “neoprimitivos”; altamente esclarecidos, não acreditam na estabilidade de nenhum sistema que se chame arte clássica e, ao mesmo tempo, reconhecem nas mais novas de suas próprias criações a vitória das vontades seculares. Sua razão se equilibra entre a perseguição do fugaz e a mania do eterno. Se condenam o ridículo irritando os teóricos da “emoção”, eles evitam arrastar a pintura para as especulações decorativas. Quando, para frustrar as artimanhas da óptica, eles dominam por um momento o mundo exterior, nenhuma superação hegeliana invade seu entendimento.

É inútil pintar ali onde é possível descrever.

Por haver pensado assim, Pablo Picasso nos deixa entrever a própria face da pintura.

Reprovando qualquer intenção ornamental, anedótica, simbólica, ele realiza uma pureza pictórica ainda ignorada. Não sei de obras pintadas, entre as mais belas do passado, que sejam da alçada da pintura tão expressamente quanto as suas.

Picasso não nega o objeto, ele o ilumina com sua inteligência e seu sentimento. Às percepções visuais, ele acrescenta as percepções táteis. Ele experimenta, compreende, organiza: o quadro não será transposição nem esquema, nós nele contemplaremos o equivalente sensível e vivo de uma ideia, a imagem total. Tese, antítese, síntese, a velha fórmula sofre uma enérgica inversão na substância dos dois primeiros termos: Picasso se confessa realista. Cézanne nos mostra as formas a viver na realidade da luz, Picasso nos traz um relatório material de sua vida real no espírito, ele funda uma perspectiva livre, móvel, de tal modo que o sagaz matemático Maurice Princet dela deduz toda uma geometria.

As nuances se neutralizam em torno de construções ardentes: Picasso desdenha o jogo muitas vezes brutal dos pretensos coloristas e reconduz as sete cores à branca unidade primordial.

Abandono da pesada herança dogmática, deslocamentos dos polos do hábito, negação lírica dos axiomas, confusões eruditas do sucessivo e do simultâneo, George Braques conhece bem as grandes leis naturais que garantem sua liberdade.

Que se pinte um rosto, uma fruta, a imagem total cintila na duração; o quadro não é mais uma porção morta do espaço. Um volume principal nasce psicologicamente das massas concorrentes. Acompanhamento fluído, uma coloração fiel ao duplo princípio irrecusável do tom frio e do tom quente favorece essa miraculosa dinâmica.

Braque, que concebe com alegria novos signos plásticos, não comete um erro de gosto. A palavra nova de modo algum nos ilude! Posso, sem diminuir a audácia inovadora desse pintor, aproximá-lo dos Chardin e dos Lancret, vincular ao gênio da raça a graça ousada de sua arte.

Lembro-me desse “Manège” que Robert Delaunay executou há três anos. Essa tela resume os paroxismos de uma época surpreendente e desordenada. Ali distingo os elementos de uma lógica desconhecida. Segundo essa lógica, Delaunay desenvolve suas recentes concepções para além de quaisquer preconceitos artísticos, ele se diverte em representar, por exemplo, a Torre Eiffel: a torre se anima vertiginiosamente com as mil noções que há ali e sobre a tela se ergue uma outra torre de proporções inesperadas e variáveis, belas. Intuitivo, Delaunay chama de intuição a brusca deflagração dos raciocínios acumulados de cada dia. Ele pinta como os povos constroem.

Sua arte surpreendente não inquieta.

O surpreendente, o inquietante, Le Fauconnier excele em difenrenciá-los: o surpreendente indica a obtenção de um esforço ainda jamais obtido, ele contém a ideia de revelação; o inquietante implica uma compreensão viciosa do passado.

Le Fauconnier situa seu ideal, inacessível àqueles sobretudo que falam sem medida de ordenamento e de estilo, em um vasto equilíbrio de números. Repartindo com imparcialidade os bens da inteligência e dos sentidos, ele tolera “um certo coeficiente de naturalismo”, apenas o que é preciso para satisfazer às exigências de uma sensualidade normal e não obscurecer o espírito. Ele não permite que o charme usurpe o espaço reservado à força, que um dos termos da ampla fórmula assumida se exalte em detrimento dos outros. Um elo exato reúne em blocos irredutíveis as partes constituintes do quadro. Le Fauconnier atinge o apogeu do poder evocador, o modo de beleza que ele adota é a grandeza.

Fora das deformações ignorantes e das estilizações geladas, a forma, tomada por muitos séculos como o suporte inanimado da cor, recupera enfim seus direitos à vida, à instabilidade. Encontrar entre os egípcios, os gregos, os chineses, o que possa responder a todos os desejos modernos, eis a grande confissão de impotência! Mas se abandonamos o mundo antigo aos arqueólogos, os velhos soldos aos numismatas, e não aceitamos sob o nome de beleza o que talvez não deva seu prestígio, seu duvidoso e indireto prestígio, apenas à própria antiguidade, não decorre disso, eu o repito, que pretendamos cancelar a Tradição. Ela está em nós; adquirida por nosso inconsciente, não temos de nos ocupar dela. Precisamos nos deter um instante diante dos Mestres, entendê-los... e passar. Os clarões únicos e progressivos do Fogo se sucedem demasiado rapidamente para que tenhamos tempo de admirá-los. Logo o erro de hoje se torna uma verdade mais completa que a verdade de ontem, logo ela se torna outra vez erro para engendrar uma verdade ainda mais rica.

Afrodite, a Vênus dos museus, o arquétipo da perfeição formal, não mais do que os figurinos da Oceania, os demônios cristãos, as paisagens de Hiroshighé Motonaga, cristaliza o absoluto. Sozinha, a preguiça dos erotismos fez sua eternidade. Signo amarelado do alfabeto de uma língua morta, a deusa de mármore foi transformada em deusa abstrata; espero que ela vá tomar assento muito longe de nós, em alguma hierarquia platônica.

Antes dizíamos de uma mulher: é uma infante de Velázquez! Agora dizemos: é uma loira de Renoir! Não duvido que amanhã proclamemos: ela é exuberante como um Delaunay, nobre como um Le Fauconnier, bela como um Braque ou como um Picasso.

Setembro de 1910. Jean Metzinger

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[1] Fonte: METZINGER, Jean. Note sur la peinture. Pan – Revue Libre, 3ème année, n. 10, p. 649-652, Octobre-Novembre 1910. Trad. Daniela Kern.