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Cubismo e primitivismo

Cubismo: múltiplas dimensões

G. Burgess: Os homens selvagens de Paris [1]

Mal havia entrado no Salon des Indépendants quando ouvi altas risadas vindas de uma galeria anexa. Apressei-me de sala em sala, sob o enorme teto de telas, apertando o cascalho sob os pés à medida que avançava, até chegar a uma reunião de parisienses bem-vestidos em um paroxismo de alegria, observando, com olhos chorosos, um quadro. Mesmo em minha pressa percebi outros espectadores se movimentando abruptamente para dentro e fora das galerias; passei os olhos por pinturas que me fizeram arfar. Mas aqui me detive assombrado. Era algo para assustar mesmo Paris. Percebi pela primeira vez que minhas concepções sobre arte precisavam de uma radical reconstrução. De repente entrei em um novo mundo, um universo de feiura. E, desde então, tenho empreendido mentalmente, em minha cabeça, um esforço para obter um novo ponto de vista sobre a beleza, assim como para compreender e apreciar esse novo movimento na arte.

"Une Soirée dans le Désert" era uma temerosa iniciação. Era uma pintura de um nu feminino sentado em um banco de areia, devorando seu próprio joelho. O sangue gotejava em uma taça de vinho. Uma palmeira e dois cactus constituem o entorno. Duas grandes cobras com olhos em forma de alvo assistiam ao deboche, enquanto duas pequenas girafas se afastavam rapidamente da cena.

O que significava tudo isso? O desenho era cru além de qualquer crença; a cor era tão atroz quanto o tema. Havia começado uma nova era na arte? Iria a feiura superar a beleza, a técnica dar lugar à ingenuidade, e cores vibrantes, discordantes, um verdadeiro patchwork de horríveis matizes, tomarem o lugar de sutis, estudadas nuances de tonalidade? Nada era sagrado, nem mesmo a beleza?

Se esse exemplo da nova arte era chocante, havia outras pinturas no Salon que eram quase tão calamitosas quanto ele. Se você pode imaginar o que uma menininha de oito anos, particularmente sanguinária, meio enlouquecida pelo gim, tem a ver com uma parede caiada, se deixada sozinha com uma caixa de lápis de cor, então você irá chegar perto de conceber com o que a maioria dessas obras se parecia. Ou você pode pegar um lírio-tocha com sua mão esquerda, fechar seus olhos e gravar uma paisagem sobre a porta. Não havia limites para a audácia e a feiura das telas. Esboços de naturezas-mortas de redondas, redondas maçãs e amarelas, amarelas laranjas em quadradas, quadradas mesas, parecem estar em uma impossível perspectiva; paisagens de árvores contorcidas, com manchas de cor virgem erradas, selvagens verdes e brilhantes amarelos, violentos púrpuras, vermelhos doentios e estremecidos azuis.

Mas os nus! Eles pareciam com marcianos esfolados, como mapas patológicos — hediondas mulheres velhas, remendadas com medonhas manchas, desequilibradas, com braços como os braços de uma suástica, esparramando-se sobre vívidos panos de fundo, ou duramente congeladas na vertical, olhando ferozmente por meio de olhos mal feitos, com narizes ou dedos faltando. Elas desafiavam a anatomia, a fisiologia, quase a própria geometria! Elas podem apenas ser aproximadas à Dama de Limerick:

"Havia uma jovenzinha de Lahore,
A mesma forma atrás como na frente;
E como ninguém sabia onde
Oferecer uma cadeira
Ela teve de se sentar no chão!"

Mas não há por que prosseguir; você irá, estou certo, se recusar a me levar a sério. Você irá meramente pensar que estou tentando ser engraçado. Por esse motivo, contratei um homem, um corajoso também, para fotografar alguns desses milagres. Em linha e composição as reproduções irão talvez me dar razão, talvez; mas desafortunadamente (ou seria afortunadamente?), a selvageria das cores escapa à câmera. Aquela cor é indescritível. Você deve acreditar que tais artistas, ao pintar tais quadros irão desafiar qualquer discórdia. Eles roubaram pôr-do-sol e arco-íris, cortaram-nos em quadrados e círculos, e os jogaram, crus e sangrentos, sobre suas telas.

Com certeza não podemos ver tal exposição calmamente. Deve-se inevitavelmente assumir uma posição a favor ou contra tais obras. A revolta é demasiado virulenta, demasiado frenética para ser ignorada. Há muito tempo atrás meu pai disse: “Quando você observar um tolo, não ria dele, mas procure descobrir por que ele faz isso. Você pode aprender algo”. E assim comecei a investigar esses lunáticos. Estariam eles tentando uma nova forma de humor? Seriam eles meramente pregadores de peças? Ou devemos tentar novamente solucionar a velha questão: "O que é arte?"

Era uma busca compensadora, analisar uma loucura como essa. Eu havia estudado as gárgulas de Oxford e Notre Dame, eu havia meditado sobre a arte da Nigéria e do Daomé, eu havia contemplado as monstruosidades hindus, os mistérios astecas e muitos outros grotescos primitivos; e me ocorreu que havia uma rationale da feiura assim como havia uma rationale da beleza; que, talvez, uma não passasse do negativo da outra, uma imagem invertida, que pode ter seu próprio valor e significado esotérico. Os homens pintaram e entalharam coisas repulsivas e obscenas quando o mundo era jovem. Seria esse revival um sinal de alguma segunda infância da raça, ou um verdadeiro renascimento da arte?

E assim procurei remontá-lo a seu significado e a seus autores. Procurei pelos homens que lançaram tais pilhérias gartantuescas. Ainda que a escola fosse nova para mim, ela já era uma velha história em Paris. Foi um questionamento de nove dias. Violentas discussões grassaram a respeito dela; ela assumiu sua posição como uma revolta e a sustentou, apesar da fulminação de críticos e do desprezo dos acadêmicos. A escola estava crescendo em número, em importância. Por muitos foi levada a sério. A princípio, os que a começaram foram chamados “Os Invertebrados”. No Salon de 1905 foram denominados "Os Incoerentes". Mas em 1906, quando ficaram mais desdenhosos, mais audaciosos, mais enlouquecidos com teorias, receberam sua atual alcunha de "Les Fauves"— as Feras Selvagens. E assim, e assim, à caçada irei!

Quem eram os iniciadores do movimento? Monet, Manet e Cézanne, diz a maioria, ainda que sua influência agora mal seja detectável. Cézanne, sem dúvida; Cézanne o patético pintor burguês, cuja maior ambição era portar a fita da Legião de Honra, e ter suas pinturas expostas no velho Salon, e que, devido ao fato de sua irmã solteirona desaprovar o uso de modelos femininos, pintava mulheres nuas a partir de homens nus! Verdadeiramente, ele merece a fita vermelha. Mas Cézanne, mesmo que experimentasse com cores puras, ainda estava preocupado com tonalidades. Ele foi apenas o ponto de partida para esses loucos exploradores. Foi Matisse que deu o primeiro passo na terra não descoberta do feio.

O próprio Matisse, sério, lamentoso, um experimentador consciente, cujas obras não são nada além de estudos de expressão, que está preocupado atualmente apenas com o estabelecimento da teoria da simplicidade, nega qualquer responsabilidade pelos excessos de seus indesejados discípulos. O pobre, paciente Matisse, abrindo seu caminho através dessa selva da arte, vê seus seguidores berrando em caminhos erráticos para a direita e a esquerda. Ele ouve suas próprias palavras especulativas serem distorcidas, mal interpretadas, incitando numerosos caprichos. Ele pode dizer, talvez: “Em minha opinião, o triângulo equilátero é um símbolo e manifestação do absoluto. Se pudéssemos colocar essa qualidade absoluta em uma pintura, ela seria uma obra de arte”. Por causa disso, o doidinho Picasso, afiado como um chicote, vivaz como o diabo, maluco como um chapeleiro, corre para seu estúdio e trama uma imensa mulher nua composta inteiramente de triângulos, e a apresenta em triunfo. Não espanta que Matisse balance sua cabeça e não sorria! Ele conversa refletidamente sobre "harmonia e volume" e "valores arquitetônicos”, e o selvagem Braque sobe em seu sótão e constrói um monstro arquitetônico que chama de Mulher, com massas e partes equilibradas, com aberturas e pernas e cornijas colunares. Matisse elogia o apelo direto ao instinto das imagens africanas em madeira, e mesmo um sóbrio Dérain, um co-experimentador, perde sua cabeça, modela um homem neolítico em um cubo sólido, cria uma mulher de esferas, espicha um gato em um cilindro, e o pinta de vermelho e amarelo!

Mestre Matisse, se o compreendo, o que, com meu imperfeito domínio do francês, e meu pouco conhecimento de arte, tenho medo de não conseguir, defende basicamente, em primeiro lugar, a sólida existência das coisas. Ele pinta peso, volume, circunferência, cor, e todos os intrínsecos atributos físicos da coisa em si, e então imbui o todo com sentimento. Oh, sim, suas pinturas têm vida! Não podemos negar isso. Elas não são meramente modelos colocados contra um fundo, como milhares de telas nos Salons, elas são seres humanos com almas. Você se afasta de suas pinturas, que o desafiaram de modo tão chocante, e você exige de outros artistas ao menos vitalidade e originalidade equiparáveis — e você não as encontra! Ele pinta com emoção, e inspira você com isso. Mas, veja só! Quando ele pinta sua esposa com uma ampla faixa de verde sob seu nariz, ainda que isso surpreendentemente a sugira, essa é sua punição por havê-la feito aparecer sempre para você de tal modo. Ele ensina você a vê-la sob uma aparência estranha e terrível. Ele ensinou a você o corpo dela. Mas, assustador como é, está vivo — terrivelmente vivo!   

Pintando assim, em uma explosão de emoção, ele usualmente atinge o fim de seu entusiasmo antes que atinja a beleza. Você observa para ele o fato de que sua mulher pintada tem apenas três dedos. “Ah, isso é verdade”, ele diz; “mas eu não poderia colocar mais dois sem derrubar o conjunto do desenho — isso iria destruir a composição e a unidade de meu ideal. Talvez, algum dia, eu possa ser capaz de obter o que quero de sentimento, de apelo emocional, e, ao mesmo tempo, desenhar todos os cinco dedos. Mas a ideia subjetiva é o que persigo agora; o resto pode esperar”.

Matisse, no entanto, não deve ser classificado entre as Feras Selvagens dessa casa dos bichos parisiense. Mas a partir dele aprendi algo sobre o status do movimento, que é uma revolta contra as sutilezas do impressionismo. É uma revolta contra o “mero charme”, contra aspectos acidentais da iluminação; um retorno à simplicidade, á objetividade, à pura cor e às qualidades decorativas.

Matisse é sempre um homem suave, quer torture a forma humana ou deboche de uma paleta, e quanto a esses outros Fauves, que o deixaram fora de vista na fuga da beleza, escolhi sete dos mais ferozes e os persegui por toda Paris. De Montmartre a Montparnasse cacei, do estábulo no térreo ao sótão do sexto andar, através de corredores estreitos, baixos, por intermináveis escadas carcomidas a vãos cavernosos, dentro e fora do Quartier e do Faubourg. E que magníficos sujeitos encontrei! Todos jovens, todos viris, todos entusiasmados, todos com abundante personalidade, e todos um pouco loucos. Mas todos corteses e cordiais, também, pacientes com minhas tolas tentativas de organizar o caos intelectual. E, após longos diálogos sobre arte, sobre ideais e novas ordens de beleza, em cada estúdio havia um novo impossível ultraje em cor para contrariar suas palavras. Isso era surpreendente em contraste. Era como se alguma terna mãe, depois de uma apaixonada descrição de seu primeiro bebê, levantasse um pano e mostrasse a você uma criança doente, deformada, à beira da morte!

E assim, em primeiro lugar, visitei Braque, que originou os nus arquitetônicos com pés quadrados, quadrados como caixas, com ombros em ângulos retos. Os próprios ombros de Braque eram magníficos. Ele poderia ser um típico atleta americano, forte, musculoso, bonito, tão simples quanto uma criança e tão modesto quanto uma menininha de nove anos. Vê-lo corar quanto pedi permissão para fotografá-lo — e então voltar ao monstro aliviado, uma fêmea com a barriga em formato de balão — oh, foi delicioso ver o grande, o robusto Braque baixar seus olhos corado!

Foi em uma quadra fora de Ur D’Orsel, não sei quantos lances de escada acima. Ninguém poderia ter sido mais gentil do que Braque com o impertinente, ignorante forasteiro. Ele me deu um esboço para sua pintura intitulada “Mulher” no Salon des Indépendents. Retratar cada aspecto físico de tal tema, ele diz, iria requerer três figuras, assim como a representação de uma casa requer um plano, uma elevação e uma seção. Sua principal preocupação era com a busca de violência (Braque também luta), de uma emoção primitiva. Ele procura a natureza a fim de possuí-la emocionalmente. Em seu esboço há uma "harmonia de volume", que é um passo além de qualquer mero efeito decorativo plano. Trata-se de um sentimento espiritual. Agora, gentil leitor, olhe para seu desenho! Tenho de ficar impassível.

"Eu não poderia retratar uma mulher em todo o seu encanto natural", diz Braque. "Não teria habilidade. Ninguém tem. Devo, portanto, criar um novo tipo de beleza, a beleza que surge para mim em termos de volume, linha, massa, peso, e através dessa beleza interpreto minha impressão subjetiva. A natureza é um mero pretexto para a composição decorativa, mais sentimento. Ela sugere emoção, e eu traduzo essa emoção em arte. Quero expor o Absoluto, e não apenas a mulher convencional".

Você compreendeu? Dá um pouco de trabalho. Vamos repetir a dose. Siga-me, sob a condução de Braque, a uma visita a Dérain, que todos consideram o mais inteligente e honesto dos Fauves, e experimentador como Matisse, procurando encontrar um caminho através do qual os mais jovens possam viajar.

Porque aqui está Dérain, agora, do outro lado da rua, com sua modelo, uma garota mortalmente pálida com cabelos negros, vestida de púrpura e verde, Dérain a deixa de mau humor, e caminhamos por uma estranha, apinhada vizinhança burguesa com Dérain, que é um jovem homem alto, com ar sério, doces olhos castanhos e uma estridente gravata azul. Nós nos lançamos, através de uma estreita passagem, com esculturas entre os arbustos, em um grande estúdio aberto, com uma galeria ao final. 

Olhe para sua maior pintura, primeiro, e você irá perder o fôlego! Ele trabalhou por dois anos nela. Eu poderia tê-la feito em dois dias. Você também poderia, tenho certeza. Um grupo de contorcidos banhistas, alguns verdes e alguns rosa-flamingo, todos, aparentemente, modelados em massa, permeia um fundo enevoado, vago. Em frente se esparrama um robusto negro, com oito pés de altura. Agora note seus entalhes africanos, horrendos pequenos deuses negros e horrendas deusas com seios cônicos, deformados, horríveis. Note, então, as imitações que Dérain fez deles em madeira e gesso. Aqui está o próprio homem cúbico, comprimido em proporções geométricas, sua cabeça entre suas pernas. Belo! O próprio gato de Dérain, alongado em um cilindro. Gabinetes de madeira queimados e pintados, estátuas com cabeças pendendo sobre os ombros, braços em qualquer lugar, menos onde deveriam estar. Um lugar selvagem, adequado aos sonhos. Mas sem lugar para a mãe.

Dérain, sendo um homem quieto, não se preocupa em falar, mas senta obedientemente para seu fotógrafo, segurando em seus braços o gato cilíndrico, como o instrui. Ele nos mostra portfólios de experimentos em pura cor, arranjos geométricos como os que você fez no segundo ano da grammar school, padrões de azulejo, rosetas salsicha, e coisas assim.

Mas quem sou eu para rir de Dérain? Não tive curiosidade a respeito dos designs Gobelin, das deusas tibetanas da destruição, e procurei por significados ocultos nas figuras primitivas dos Mound Builders? Deixe Dérain falar, se ele quer ser persuadido. O que ele aprendeu com os negros da Nigéria? Por que ele então concebe mulheres feias?

"Porque o que, afinal de contas, é uma mulher bonita?" Dérain responde, gentilmente. "Isso é uma mera impressão subjetiva — o que você mesmo pensa sobre ela. Isso é o que eu pinto, outro tipo de beleza que é apenas meu. Muitas vezes há mais apelo psíquico em uma mulher tida como feia do que em uma bonita; e, em meu ideal, a reconstruo para mostrar aquela beleza em termos de linha e volume. Uma mulher comum pode agradar por sua graça, por seu movimento na dança, por exemplo. Assim, ela pode me agradar por suas harmonias de volume. Se pinto uma garota à luz do sol, é a luz do sol que estou pintando, não a garota real; e mesmo para isso devo ter o próprio sol em minha paleta. Não me importo com um efeito acidental de luz e sombra, algo de ‘mero charme’”.

"Os japoneses veem as coisas desse modo. Eles não pintam a luz do sol, eles não desenham sombras, que causam perplexidade e falsificam a verdadeira forma das coisas. As figuras egípcias têm simplicidade, dignidade, clareza, unidade; elas expressam emoção quase que por meio de uma fórmula convencional, como a própria escrita, de tão direta que é. Assim procuro um método lógico de apresentar minha ideia. Sendo esses africanos primitivos, não complexos, sem cultura, podem expressar seu pensamento por meio de um apelo direto ao instinto. Seus entalhes são informados por emoção. Assim a Natureza me dá o material com o qual construir meu próprio mundo, governado não por limitações naturais, mas por instinto e sentimento”.

Bem, bem — até que olhemos novamente para suas pinturas a fim de apreender seu apelo ao sentimento. Somos então jogados novamente ao questionamento. Onde está aquela beleza subjetiva que é a sua própria? No homem cúbico? No gato cilíndrico? Nos banhistas de massa? Mas, como ele é apenas um experimentador, a falha de seu experimento não prova a falsidade do princípio envolvido. Assim muito já está claro, no entanto; esses homens não estão tentando transcrever o efeito que a natureza causa no olho, como os impressionistas. Trata-se de algo mais profundo do que isso.

E agora sobre Picasso, de quem, aqui e ali, ouve-se tanto. Picasso não irá expor suas pinturas. Ele é muito orgulhoso e muito desdenhoso com relação às opiniões da canaille. Mas ele vende sua obra, no entanto. Isso é o surpreendente sobre todos eles. Quem compra? Sabe Deus! Alemães, suponho.

É o mais pitoresco local em Paris, onde a ampla Rue de Ravignan desce a colina de Montmartre, quebra em uma cascata de escadas e desemboca em um pequeno espaço aberto com árvores. Picasso chega deslizando do café, esfregando sua boca, vestido com um suéter americano azul, um boné em sua cabeça, um sorriso em sua face.

Picasso é um demônio. Uso o termo no mais elogioso sentido, pois ele é jovem, com frescor, pele cor de oliva, olhos negros e cabelos negros, um tipo hispânico, com uma exuberante, supérflua pitada de sangue em si. Penso em um segundanista de Yale que tivesse sido pego furtando placas, e estivesse a ponto de ser expulso. Então, a isso, se acrescento que ele é o único do grupo com senso de humor, você certamente irá se apaixonar por ele à primeira vista, como ocorreu comigo.

Mas seu estúdio! Se você afasta seus olhos do incrível amontoado de lixo e poeira — das garrafas, trapos, pinturas, paletas, esboços, roupas e comida, das cadeiras e mesas e sofás atulhados a esmo com lixo e preciosidades —, eles pousam sobre pinturas que iriam arrepiar seus cabelos. Picasso é colossal em sua audácia. Picasso é o duplamente destilado exemplo principal. Suas telas justamente fedem à insolência da juventude; elas ultrajam a natureza, a tradição, a decência. Elas são abomináveis. Você pergunta a ele se usa modelos, e ele volta para você um olho dançante. "Por que eu precisaria delas?" ri forçosamente Picasso, enquanto pisca para suas ogras ultramarinas.

As terríveis pinturas aproximam-se através do caos. Mulheres monstruosas, monolíticas, criaturas como os postes totem do Alasca, são talhadas em sólidas, brutais cores, atemorizantes, estarrecedoras! O quão pouco Picasso, com seu senso de humor, com sua juventude e diabruras, parece glorioso em seus crimes! Como se ilumina, tal como uma tocha, quando fala sobre sua obra!

Duvido que Picasso alguma vez tenha terminado suas pinturas. Os pesadelos são bárbaros demais para durar; levar adiante tais profanidades seria impossível. Então observamos suas mulheres piramidais, suas caricaturas sub-africanas, figuras com olhos retorcidos, com pernas contorcidas, e — coisas inconfessavelmente piores, e corrigimos qualquer ideia que possamos ter…

Então Picasso, também, fala sobre valores e volumes, sobre a subjetividade e sobre o sentimento da emoção e do instinto. Et pat-à-tie et-pat-à-ta, como dizem os franceses. Mas ele é fascinante demais como homem para fazer com que se queira tomá-lo apenas como um artista. Ele é louco, ou é o mais raro dos blaguers? Deixemos que outros considerem suas telas assassinas honestamente – quero apenas ver o riso forçado de Picasso! Onde ele encontrou seus ogrillions? Nem mesmo nas águas sob a terra... Picasso fica bêbado com vermillion e cadmium. O absinto não pode rasgar forte o suficiente para inflamar tal fantasmagoria! Apenas a própria alegria da vida poderia divertir-se com tais brutalidades.

Mas, se Picasso é, na vida e na arte, um demônio, ele ao menos tem miolos, e pode simultaneamente desenhar. Não se dá o mesmo, temo, com o pobre Czobel, um jovem húngaro, quase um huno, isto é, com o que não é vândalo nele. Ele ainda não foi bem-sucedido em fazer com que falem sobre ele, mas fez o seu pior para conquistar infâmia no Salon des Indépendants este ano. Ele sacrificou mesmo a si próprio na tentativa, pintando seu próprio retrato para o inimigo uivar a respeito dele. E Czobel não tem má aparência, tampouco. Ele tem a verve e a coragem de Picasso domada por uma espécie de idiotia inofensiva. Enquanto esperava por ele, bem no fim da Cité Falguière, sobre a ponte que conecta uma fileira de estúdios construídos como primitivas casas lacustres, acima do nível da sarjeta, ele apareceu, segurando um buquê de jacintos. Que país em que tais demônios encarnados em telas aparecem, cobertos de flores, para dar boas-vindas aos intrusos! Eu esperava no mínimo um viviseccionista, que se alimentasse de bebês fritos.

O estúdio de Czobel estava apenas atrás do de Picasso na corrida pela desordem. Mas então Czobel tinha de trabalhar e cozinhar e dormir e pendurar suas roupas e entreter seus amigos em seu único quarto. Vamos raspar o amarelo ocre de uma cadeira, secá-la com sua camisa, e sentar, enquanto Czobel nervosamente dobra e dobra de novo o lenço de seda negra em seu pescoço, aparentemente explicando o que ele possivelmente não pode explicar. Ele é dolorosamente desarticulado; luta como uma besta estúpida para se expressar, e então perde o controle em alemão.

No centro da sala há uma revoltante pintura de mulher. Devo dizer mulher? Chamemos a isso, em nome da decência, de fêmea. Czobel, sem dúvida, como Braque, teria preferido chamá-la de mulher. Ela está nua e não tem vergonha, se podemos julgar por seus dois grandes olhos. Outras de seu feitio estão espalhadas por ali. Como regra, elas tinham a idade de 89 anos. Elas tinham uma tez muito avermelhada, avivada por pontos de cor mostarda e gargantas amarelo-gema; tinham braços laranjas e azuis. Às vezes, não com frequência, elas vestiam saias verdes brilhantes.

O próprio Czobel tinha a garganta verde, mas isso era apenas o reflexo de seu casaco de lona verde. De volta ao arado, pobre pequeno Czobel, digo eu em inglês, e Czobel docemente sorri.

Mas havia uma pintura que eu realmente queria comprar. Ela satisfazia algum vergonhoso, inominável desejo em meu peito. Chamava-se Le Moulin de la Galette, e supostamente (de acordo com Czobel) representava aquele vivaz baile em uma noite de gala. Eu mesmo estive lá, mas não vi nenhuma criança asteca valsando; não vi damas com olhos como talhos feitos com uma faca de trinchar. Todas as figuras eram contornadas com uma grossa linha de cor. Seus homens eram aparentemente todos irmãos – do macaco. Mas não levemos o pobre Czobel muito a sério. Nem mesmo Les Fauves fazem isso.

Mas Friesz é um homem que devemos levar a sério, pois Friesz é uma pessoa séria, e, se ele quiser, pode pintar. Ele é um loiro alto, ereto, que se parece com um músico, com feições bem-feitas, cabelo ondulado e um ar de prosperidade cavalheiresca. Ele se veste elegantemente, exceto por suas galochas de borracha, evidências da fria, úmida primavera parisiense. Muito gentil, quase cativante. Ele tem imensos portfólios de reproduções das pinturas de Cézanne; tem muitos de seus próprios desenhos, organizadamente montados. Ele tem a obra de outros pintores emolduradas em suas paredes. É evidente que ele é abastado.

Seu estúdio é comprido e amplo e alto, com portas góticas de aparência eclesiástica, e fora dele outro quarto com muitas coisas bonitas. Entre elas, evidentemente, há deuses entalhados africanos e demônios de todo tipo. Desde que Matisse destacou seus "volumes" todos os Fauves estiveram revirando as lojas de raridades atrás de arte negra. Mas Friesz tem um gosto próprio particular pois, pendurados de um lado a outro dos vidros da janela, como transparências, estão engraçados slides antigos de lanterna-mágica, "pintados à mão”, feitos na Alemanha. Eles podem ser exemplos da maneira posterior de Matisse. Friesz não é apenas cortês, ele tem uma mente. Ele fala bem. Escuta. Não devemos mais chamá-la de uma escola de Feras Selvagens.

"Trata-se de um movimento neoclássico, que tende para o estilo arquitetônico da arte egípcia, ou antes que pretende se colocar em paralelo a ele em desenvolvimento. O moderno impressionismo francês é decadente. Em sua reação contra os frígidos e insípidos arranjos do Renascimento, ele se deixou levar a um extremo tão ruim quanto, e se contentou com impressões fugidias e expressões prematuras. Esse novo movimento é uma tentativa de retorno à simplicidade, mas não necessariamente um retorno a quaisquer das artes primitivas. Trata-se do começo de uma nova arte. Há um crescente sentimento pelos valores decorativos. Ele procura expressar isso por meio de um certo ‘estilo’ de linha e volume, de pura cor, ao invés de tons sutilmente graduados; por contraste, ao invés de modulações; por linhas e formas simples, ao invés de formas complexas”.

Estamos ficando mais próximos, agora, ainda que a teoria continue aparentemente inconsistente com a prática. Friesz é o mais próximo de Cézanne; ele ainda não eliminou propriamente a tonalidade. Ele apenas começou a agir errado. Mas passemos a Herbin, que pinta naturezas-mortas e cafés. Ele está quase à mão.

Quase na esquina, é verdade, mas que contraste com a elegância e as aristocráticas cercanias de Friesz! Herbin vive em um sótão mais alto do que o de Braque, menor do que o de Czobel, mas tão doce e organizado e limpo quanto um quarto de solteirona. Ele é, de fato, tanto quarto como estúdio. Um tapete rosado esconde seu divã. Há apenas uma pequena janela, uma clarabóia no teto, mas o lugar é agradável, com potes de flores. Uma prateleira é preenchida com vasos de cores brilhantes. Um chinelo chinês porta um buquê de folhas verdes frescas. Mas a marca das Feras Selvagens está em todo o cômodo, pois as próprias pinturas de Herbin estão penduradas ali, e a parede é espalhafatosa, com raspados de paleta. Encostei-me nelas e tive um beijo verde pelo qual lembrar depois, para sempre, de Herbin.

Herbin é quase triste. Embora não seja isso, exatamente; nem mesmo bem melancolia, mesmo que seja pobre e um ermitão. Ele não tem amigos, e não quer nenhum, essa pessoa-poeta de pequena estatura, olhos brilhantes, com cabelos longos e barba esparsa, imaculadamente limpo no vestir, escrupulosamente polido em sua hospitalidade. Parece injusto descrevê-lo, pois sua indiferença era nobre, ainda que eu deva desenhar minha imagem a partir da vida, como ele desenha a sua. Ele não vê ninguém, nunca vai a cafés, não se interessa por nada a não ser por si mesmo e por sua obra, e por um bom livro ou dois. Há uma completude acerca de sua atitude que proibe o sentimento de pena.

Nem pode Herbin dizer muito sobre o "movimento", se é que há um movimento. Em sua mente isso é individualismo, e cada homem trabalha apenas para si mesmo. Ele pinta para sua própria satisfação, em qualquer ritmo, e o mundo pode ficar em suspenso. Ele pinta a rotundidade e o peso e a curvilinearidade e as qualidades plásticas da natureza-morta; ele pinta a coisa-em-si. Ele não sente a necessidade de desenhar cada galho em uma árvore, nem mesmo de apresentar a mera atratividade ao olho. Portanto, desenhe uma linha curva que conecte todos os pontos no topo de uma árvore, e você tem uma simples expressão da natureza tal como agrada a ele.

"Não distorço a natureza”, ele diz; “eu a sacrifico a uma forma superior de beleza e de unidade decorativa”. E assim deixamos Herbin, que devia estar nos campos verdes, e não confinado sob sua insuficiente clarabóia, e parti sem saber exatamente se devia invejá-lo ou me apiedar dele.

Assim, finalmente, para a moradia de Metzinger. Agora o próprio Metzinger, como Friesz, passou pelo estágio impressionista; assim ele deve saber sobre essa nova ideia. Não é como se nunca tivesse sido domesticado. Ele pintou uma vez aquele "mero charme", do qual pareceria que nós todos fomos excessivamente alimentados. Metzinger uma vez criou fantásticos mosaicos de puro pigmento, cada pequeno quadrado de cor não tocando exatamente o próximo, de modo que disso devia resultar um efeito de luz vibrante. Ele pintava requintadas composições de nuvem e penhasco e mar; ele pintou mulheres e as fez de forma justa, mesmo quando eram as mulheres das feiras de boulevard. Mas agora, traduzidas no idioma da beleza subjetiva, nessa estranha linguagem neoclássica, aquelas mesmas mulheres, redesenhadas, aparecem em linhas duras, cruas, nervosas, em manchas de cor feroz. Certamente Metzinger deveria saber o que tais coisas significam. Picasso nunca pintou uma mulher bonita, ainda que tenhamos notado que ele gosta de se associar a elas. Czobel as vê através das grades de sua cela, e brada tons de malva e cinabre. Dérain as vê como cones e prismas, e Braque como se tivessem sido extraídas de blocos de madeira por aprendizes de carpinteiro. Mas Metzinger é mais terno com relação ao sexo. Ele as arranja como flores são arranjadas na tapeçaria e no papel de parede; ele as simplifica em meros padrões, e as conduz gentilmente pela fronteira da Terra do Pôster para o mundo do Feio, e isso de modo tão terno que elas não ficam muito danificadas — apenas mais fracas, mais vegetais, mais anêmicas.

E quanto a Metzinger? Um cavalheiro escrupulosamente polido, bem vestido como sempre, em um quarto escrupulosamente limpo, com uma mente escrupulosamente bem-ordenada. Ele é completo como uma figura de cera, com longos cílios castanhos e uma face claramente delimitada. Ele não afeta idiossincrasias de maneiras ou vestimenta. Não se pode questionar sua honestidade e seriedade ou sinceridade. Ele é, talvez, o mais articulado de todos. Não o chamemos de puritano.

"Ao invés de copiar a natureza”, diz ele, “criamos um "milieu para nós mesmos, em que nosso sentimento possa se apresentar através de uma justaposição de cores. É difícil explicar, mas talvez isso possa ser ilustrado por meio de uma analogia com a literatura e a música. Seu próprio Edgar Poe (ele pronuncia “Ed Carpoe”) não tenta reproduzir a natureza realisticamente. Alguma fase da vida sugere uma emoção, como aquela do horror em ‘The Fall of the House of Ushur’. Essa ideia subjetiva ele traduz em arte. Ele faz uma composição a partir dela”.

"Assim, a música não tenta imitar os sons da natureza, mas deve interpretar e incorporar emoções despertadas pela natureza através de uma convenção própria, de modo a ser esteticamente agradável. Desta maneira, nós, seguindo as pistas da natureza, construímos decorativamente agradáveis harmonias e sinfonias de cor, expressão de nosso sentimento”.

Penso que aqui estou mais próximo a isso. Passemos a olhar a arte deles como olhamos a música de Debussy, e Les Fauves não são tão loucos, afinal de contas; são apenas inexperientes com seu próprio método. Provei, ao menos, que não são charlatães. Eles são honestos e não pretendem uma revolta séria. Agora, uma revolta não apenas começa uma ação, mas uma reação, e essas Feras Selvagens podem ainda influenciar as escolas mais tradicionais. Estejam certos ou errados, há, no entanto, algo tão viril, tão cheio de alegria acerca de sua obra que justifica a definição de Nietzsche de uma arte ascendente ou renascente. Pois isso é o produto de um excesso de vida e energia, não da degenerescência de emoções estagnadas. É uma tentativa de expressão, mais do que de satisfação; é vivo e pulsante, não algo morto, congelado em uma convenção. E um pensamento; e qualquer coisa assim desafia os acadêmicos a mostrar um fervor similar, uma igual vitalidade. Ele estabelece nosso pensamento; e qualquer coisa que faça isso certamente tem seu lugar na civilização.

Os homens devem experimentar na arte e na vida. Alguns podem vagar para o leste ou para o oeste do caminho aberto, alguns reacionários podem mesmo voltar para o sul pela trilha do passado. Mas uns poucos avançam pelo norte, à frente do resto, acelerando o caminho do progresso para a raça. Talvez essas Feras Selvagens sejam realmente os precursores de um renascimento, abrindo um caminho para nós através do deserto.

Mas há o contraste entre sua fala e sua obra! Isso ainda não me convenceu por completo. Mas, enfim, não sou um pintor, e talvez apenas um pintor possa compreender. Esse é meu palpite! E assim, como uma última tentativa, como a melhor maneira, também, comprei uma caixa de cores e pincéis. Irei tentar isso de modo prático sobre a tela. Esse é o único modo de testar. Eu mesmo vou me tornar uma Fera Selvagem! Pois, imagine, eles devem vender suas pinturas, e eu posso vender as minhas. Quem sabe!

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[1] Fonte: BURGESS, Gelett. The wild men of Paris. Architectural Record, 27, n. 5, p. 400-414, May 1910. Trad. Daniela Kern. As imagens aqui reproduzidas acompanham o texto original.