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Reflexões a partir do estudo do Possível e do Necessário: uma jogada de futebol.

Ana Maria Marcon

Nas aulas de Educação Física, o jogo de futebol é o esporte nacional e de pleno conhecimento de todos os interessados por esta modalidade. Além disso, nesta disciplina, de maneira geral, os esportes com bola têm a preferência dos alunos. Foi solicitado às crianças de anos iniciais do Ensino Fundamental que fizessem um desenho posicionando os jogadores de futebol em quadra. A tarefa do desenho (TD) foi realizada em dois momentos, com seis meses de intervalo. No primeiro momento a TD foi composta por duas situações descritas abaixo:
Situação 1: Pedir ao sujeito que desenhe numa quadra os 10 jogadores dados, em situação de ataque e defesa.
Situação 2: Após, com o mesmo desenho da quadra, dados três jogadores na defesa e dois no ataque, solicitar ao sujeito que desenhe uma jogada que termine em gol.

No segundo momento requereu-se nova atividade: a tarefa de história (TH), que foi acrescentada para fazer um paralelo entre o desenvolvimento cognitivo e o moral. A TH compreendeu duas pequenas histórias envolvendo uma situação de culpa. A proposta consistiu em contar as histórias ao grupo, questioná-los quanto à sua compreensão e solicitar a marcação de uma das alternativas à pergunta feita.

As histórias relativas à culpa foram compostas por dois desajeitamentos, sendo que no primeiro há boa intenção, mas um grande dano material. Na segunda, há má intenção e pouco dano material. Eis as histórias:

A professora pede para os alunos guardarem o material.

  1. Luis joga a bola para a professora e acerta um extintor de incêndio, espalhando espuma por todo o ginásio, impossibilitando a realização da aula.
  2. Rafael, querendo esconder a bola para brincar mais um pouco, chuta-a e acerta a cabeça de um colega.

Na primeira ocasião, na TD, todos os dezoito sujeitos observados não utilizaram um intermediário para chutar a gol. Após seis meses, sete sujeitos utilizaram um intermediário para realizar o chute a gol. Dos onze restantes (que não usaram intermediários), dez foram os mesmos que consideraram mais grave o grande dano material sem má intenção.

Na primeira situação, na TD, as crianças desenhavam os jogadores em quadra e, quando questionadas, não faziam a relação do posicionamento dos jogadores com uma possibilidade de ataque ou defesa. Quanto à situação 2 (montar uma jogada), todas desenhavam as mais diferentes trajetórias da bola em direção ao gol, nunca se utilizando de intermediários. Nesta tarefa, não era possível uma trajetória reta da bola para atingir o objetivo; assim, foi curioso observar que todos desenharam trajetos fisicamente impossíveis para ela. No livro A Tomada de Consciência, é relatada uma experiência com uma catapulta. Nesta tarefa, o sujeito deveria utilizar uma alavanca para atingir o alvo determinado. Vemos (PIAGET, 1978, p.130) que “uma ação do corpo próprio que leva diretamente ao objetivo é preferida a uma ação com mediador quando este não constitui um prolongamento do braço ou da mão”.

Os sujeitos do estudo nos levaram a supor que as crianças se preocupavam apenas com o objetivo a ser atingido, como o caso da tomada de consciência na construção de um caminho em aclive (PIAGET, 1978, p.75), em que as ações são concentradas no objetivo a ser atingido. A percepção está voltada para os aspectos positivos, negligenciando as negações – isto é, elas se preocupam em empilhar os objetos para atingir a altura, mas esquecem do comprimento horizontal. Há, então, nos níveis elementares, uma falta de estabelecimento de relações. A tomada de consciência é alcançada quando há uma efetiva relação entre os dados de observação do objeto e os dados de observação da ação. Em outras palavras (PIAGET, 1978), uma melhor tomada de consciência da ação se deve a um início da compreensão causal. Há um encadeamento de relações, fruto das ações sobre o objeto e das coordenações das ações, que levam à abstração refletidora, fonte das coordenações causais. A leitura dos dados de observação depende da compreensão.

Nos livros “O Possível e o Necessário”, o autor aprofunda essas questões, ressaltando que tanto um como o outro provêm das atividades e construções do sujeito, não dos objetos. Nessa obra, Piaget salienta que “tanto quanto os possíveis exprimem diferenciações e as necessidades às integrações, a gênese das operações deve ser procurada na sua união” (PIAGET, 1986, p.126). Uma possibilidade existe quando é consciente para o sujeito. “A descoberta de um procedimento gera a dúvida e esse desequilíbrio impele a reequilibração no sentido de uma busca de outras transformações” (Piaget, 1985, p.33). Outro lembrete se refere ao observador: [...] “o que produz os possíveis não é a escolha percebida pelo observador, [...] mas sim, a tomada de consciência gradual da criança do fato de que há escolha” (PIAGET, 1986, p.102).

No texto publicado em 1986 (p.124), Piaget aborda as questões das necessidades falando que o primeiro patamar da solução de um problema é o “das determinações prévias ou da pesquisa das soluções necessárias”.

Pode-se dizer, nestas análises elementares que serviram para rever o conteúdo discutido ao longo destes estudos, que as crianças que chutavam diretamente ao gol agiam entendendo que o real é o que deve ser: o objetivo é o gol, é necessário que seja assim, o que elimina outras possibilidades. Elas possuíam uma determinação e uma solução para o problema. Os únicos possíveis são as poucas variações efetivamente observadas (PIAGET, 1986).

Inicialmente, os estádios dos possíveis são concebidos por sucessões analógicas. No segundo nível, constituem-se os coopossíveis concretos e limitados. Por fim, surgem os coopossíveis quaisquer em compreensão e ilimitados em extensão.

Como já citado, a TH foi acrescentada para fazer um paralelo entre o desenvolvimento cognitivo e o moral. Para Piaget (2005, p. 77), “há esquemas de comportamento em relação às pessoas, assim como em relação aos objetos, e estes esquemas são, ao mesmo tempo, cognitivos e afetivos”. No livro Inteligência e Afetividade (2005, p. 96), Piaget cita Rauh, que mostrou que “as leis morais são gerais e que a aplicação que cada um lhe dá nas situações particulares – experiência moral – é uma constante criação e o fato é que cada fase prepara para a seguinte”. Para o autor, as regras impostas pelo adulto, “verbalmente ou materialmente (castigos), constituem [...] obrigações categóricas para as crianças, [...] adquirindo assim, o valor de necessidade ritual, e as coisas proibidas ficam constituindo tabus” (PIAGET, 1994, p.111).

O realismo moral e as formas primitivas do respeito poderiam ser associados aos possíveis gerados por sucessões analógicas para responder às necessidades. No nível subsequente, constituem-se os coopossíveis concretos e limitados. Apenas no terceiro nível o sujeito alcança os coopossíveis quaisquer em compreensão e ilimitados em extensão, que correspondem ao pensamento hipotético-dedutivo.

Vemos que aqueles que já se utilizam de um intermediário se encaminham para perceber mais o mundo em volta, o que amplia as suas relações, conseguindo considerar mais culpado aquele que teve a má intenção, libertando-se do dano material concreto e atribuindo a gravidade do ato à intenção do sujeito.

Os dados aqui apresentados mostram um recorte restrito e limitado do caminho percorrido no desenvolvimento das estruturas afetivas e cognitivas. Parafraseando Piaget (1973, p. 194): “As ações dos indivíduos [...] que consistem as relações sociais tendem, igualmente, no campo das trocas de pensamento, para uma forma de reciprocidade que implica a mobilidade reversível própria do agrupamento”. A cooperação, neste contexto, é um sistema de operações efetuadas em comum, que poderíamos associar ao terceiro nível dos possíveis. A reflexão sobre os fatores que levam a esses patamares enriquece as possibilidades do professor na medida em que resignifica o fazer diário.

Outras referências:

PIAGET, J. O Juízo Moral na Criança. São Paulo: Summus, 1994.
PIAGET, J. Tomada de Consciência. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo. 1978.
PIAGET, J. Estudos Sociológicos. Rio: Forense. 1973.
PIAGET, J. Inteligencia e Afectividad. Buenos Aires: Aique Grupo Editor S.A., 2005.

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