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Possíveis contribuições do quarto período da teoria piagetiana aos atendimentos psicopedagógicos

Cristiane D. Suardi

Com base na Epistemologia Genética, todo novo conhecimento resulta de regulações e de equilibrações. Compreender o processo de criação de novos conhecimentos é de fundamental importância para o profissional que atua com crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem. Assim, com o intuito de contribuir para a formação continuada de um grupo de Psicopedagogas que atuam no LEP – FAPA busca-se no referencial piagetiano subsídios para o entendimento deste processo, considerando-se a relevância da concepção interacionista e dialética que orienta este referencial.

Piaget (1972/2007/2) afirma que o processo de criação de novos conhecimentos é um processo ativo, uma equilibração gradual de atividades cognitivas, como um processo de abstração reflexionante, que parte da coordenação das ações dos sujeitos, além de ser acompanhada de abstrações empíricas, isto é, retirada de informações dos objetos. Conforme o autor, o processo de equilibração toma a forma de uma sucessão de níveis de equilíbrio obedecendo a uma sequência – não é possível alcançar o segundo nível a menos que o equilíbrio tenha sido alcançado no primeiro, e o equilíbrio do terceiro nível só é possível quando o equilíbrio do segundo nível foi alcançado, e assim sucessivamente.

Piaget analisa a extensão dos conhecimentos em forma de tomada de consciência, de abertura para novos possíveis e de generalizações. As formas mais elementares de conhecimento negligenciam a negação, que é construída aos poucos. São as negações, as contradições, que conduzem à superação, sendo importantes no desenvolvimento dos conhecimentos e parte integrante do processo de equilibração.

O processo de construção de novos conhecimentos pode dar-se através da abertura de novos possíveis, de uma dinâmica interna na qual o sujeito desprende-se das pseudonecessidades ou pseudoimpossibilidades, isto é, aquilo que o sujeito erroneamente acredita não ser possível, tornando-se capaz de imaginar variações possíveis. Este fato leva o sujeito a pensar que outras variações são possíveis, o que resulta em um processo continuo de novas aberturas, no qual a acomodação tem papel preponderante. Para Piaget (1985), o possível e o necessário não procedem de fatos objetivos, mas derivam de atividades e construções do sujeito.

Há um desenvolvimento qualitativo e, ao mesmo tempo, complexo e regular que demonstra a formação progressiva dos possíveis: o possível é uma construção do sujeito em interação com as propriedades do objeto, sendo estas inseridas em interpretações ligadas às suas atividades.

Piaget (1985) destaca, ainda, a existência de dois grandes sistemas cognitivos no desenvolvimento dos sujeitos. O sistema presentativo fechado possui esquemas e estruturas estáveis que servem essencialmente para compreender o real – este sistema forma o sujeito epistêmico. O sistema de procedimento, em continua mobilidade, serve para se obter êxito, satisfazer necessidades através de invenções ou mudanças de processos. Este processo forma o sujeito psicológico, pois as necessidades são características individuais. Piaget (1985) destaca, ainda, haver um paralelismo entre a formação dos possíveis ou evolução dos procedimentos e a sucessão dos estágios de desenvolvimento cognitivo.

Na obra O Possível e o Necessário: evolução dos possíveis na criança (1985), Piaget defende que a formação dos possíveis e sua multiplicidade durante o desenvolvimento constituem um dos melhores argumentos contra o empirismo. Para o autor, do ponto de vista dos possíveis, um erro quando corrigido pode ser mais propício para a abertura de novos possíveis do que o sucesso imediato. Isto é, o possível cognitivo é, essencialmente, invenção e criação.

Cabe ressaltar que, segundo o autor, os dois sistemas anteriormente mencionados – o presentativo fechado e o de procedimento – são complementares e dependem da equilibração, pois se o possível procede das vitórias obtidas sobre as resistências do real e das lacunas a serem preenchidas, pode-se supor que a essência das possibilidades é intervir no processo das reequilibrações e manifestar o poder do sujeito. Na busca de sua atualização, o possível é resultado de uma atividade acomodatícia e depende tanto da flexibilidade e solidez dos esquemas como das resistências do real.

Piaget (1985) ressalta, ainda, haver um paralelismo entre a formação dos possíveis ou evolução dos procedimentos e a sucessão dos estágios de desenvolvimento cognitivo. Resta, contudo, conforme o autor, saber qual dos dois desenvolvimentos provoca o outro e como. É importante ressaltar que Piaget faz uma distinção entre as etapas de evolução dos possíveis:

Ponto de vista funcional Ponto de vista estrutural
Possível hipotético – ensaio/erro Possível engendrado - analógico: semelhanças e diferenças.
Possível atualizável – ensaio organizado Coopossível concreto – diversos possíveis são antecipados
Possível dedutível – variações intrínsecas Coopossível abstrato – as várias possibilidades de atualizações entre muitas
Possível exigível – novas construções, mas sem os procedimentos adequados. Coopossível qualquer - ilimitado

Assim, de acordo com Piaget (1985), ao estágio pré-operatório I correspondem os possíveis por sucessão analógica, sendo essa sucessão uma combinação de semelhanças maiores e diferenças menores. Do ponto de vista das operações, este nível é caracterizado pela ausência de reversibilidade, de inferências sistemáticas e de fechamentos. A partir do momento em que um objetivo pode ser atingido por meios diversos ou procedimentos distintos, o foco inicial pode ficar prejudicado, isto é, o sujeito corre o risco de distanciar-se da proposta inicial. No entanto, neste nível, a abertura para novos possíveis proporciona uma atividade acomodatícia, seja de escolhas ou de encadeamentos de formas múltiplas, que irá fornecer os conteúdos necessários às operações nascentes (operações concretas). Deste modo, a simples escolha ou reunião em função de semelhanças ou diferenças pode indicar o ponto de partida das classes, ou da classificação. Do mesmo modo, a forma de ordenação em função de variações para mais ou menos pode indicar o inicio da seriação. Cabe, contudo, ressaltar que o que possibilita a criação da seriação e da classificação não é o ato de antecipar muitos possíveis, mas de ser capaz de relacioná-los, generalizá-los e torná-los regráveis. Além disso, Piaget (1985) afirma que é preciso ir além: é necessário ainda que o sujeito utilize a dialética, seja capaz de imaginar uma variação nova, sendo esta acompanhada de uma negação parcial explícita.

No nível IIA, início das operações concretas, constituem-se os co possíveis concretos. Desde o início das operações concretas, o sujeito descobre diversos co-possíveis que podem ser agrupados por famílias em função dos distintos modos de abertura que os caracterizam. Existe um sincronismo aproximativo entre o possível e o necessário. Neste nível, a negação é deixada de lado e começa a haver a possibilidade de ações ou efeitos diferentes, e cada diferença admite a possibilidade de outras combinações. Para Piaget (1985), a descoberta de dois procedimentos gera a dúvida, e esse desequilíbrio conduz à reequilibração, no sentido de uma busca de outras transformações. Conforme Piaget (1985, p. 132),

[...] a formação das operações concretas se efetua dentro de um desenvolvimento mais amplo que a condiciona, mas só chega a esse resultado mediante abstrações reflexivas e regulações mais desenvolvidas, nos mecanismos das novas aberturas.

No nível IIB situam-se os co-possíveis abstratos. Ao ultrapassar o domínio das atualizações, esses possíveis tornam-se dedutíveis, constituindo uma espécie de classes ou séries virtuais que podem ser generalizadas a inúmeras situações. É nesse nível que ocorre o equilíbrio das operações concretas.

Já no patamar III, que corresponde às operações hipotético-dedutivas, surgem os co-possíveis quaisquer em número ilimitado. Nesse patamar, ocorre um salto que conduz ao infinito, a partir de alguns co-possíveis concretos. Aqui, as possibilidades são uma necessidade.

De acordo com Piaget (1985, p.133), “[...] a formação dos possíveis não é consequência de simples ou livres associações, mas consiste em reais aberturas que exigem uma liberação de limitações resistentes em graus diversos”. Conforme o autor, essas limitações decorrem de um estado de indiferenciação inicial entre o real, o possível e o necessário – um impede o desenvolvimento de seus dois complementares. Contudo, é importante ressaltar que o real é único em si mesmo, ou seja, é composto de objetos e acontecimentos conhecidos ou não, independentes da ação dos sujeitos. Já o possível e o necessário são resultados de atividades do sujeito.

Piaget (1985) considera que cada novo possível constitui uma construção e uma abertura, pois engloba uma novidade positiva e uma lacuna a ser preenchida, isto é, uma limitação perturbadora a ser compensada. O nascimento do possível apresenta uma conquista atualizável, além da aquisição de um poder que tende a se tornar fonte de desequilíbrio enquanto não conduz a novas conquistas. Para o autor, tanto os possíveis quanto o campo virtual de possibilidades constituem fonte permanente de reequilibrações, que são, ao mesmo tempo, construtivas e compensadoras.

Quanto à evolução dos necessários na criança, abordada no volume 2, Piaget (1986, p. 08) destaca que “[...] o necessário [...] é um produto das composições inferenciais do sujeito”. Para o autor, a evolução do necessário parece paralela à do possível. No início, são necessidades locais e incompletas, visíveis no nível sensório-motor e desenvolvidas no plano das representações pré-operatórias. Ao atingir o nível das operações concretas, surgem as formas sistemáticas de necessidade, como a recursividade, a transitividade e as conservações. Quando o sujeito atinge o nível hipotético-dedutível, as necessidades se generalizam. Conforme Piaget (1986) pode-se pensar em uma grande lei que engloba o real, o possível e o necessário: no início, constata-se uma indiferenciação entre os três aspectos. Com a abertura de novos possíveis, surgem diferenciações que dão lugar a novas integrações, estando as necessidades ligadas a elas. Posteriormente, ocorre a integração dos três aspectos em um sistema total, no qual o real aparece como um conjunto de atualizações entre os possíveis, estando o real subordinado aos sistemas de ligações necessárias. O autor destaca que o sujeito engloba o real no meio do possível e do necessário, devido às ações que ele pode efetuar. Assim, tanto os possíveis quanto os necessários não procedem de fatos objetivos, mas das atividades dos sujeitos.

Piaget (1986) considera também que tanto os possíveis quanto os necessários têm papéis importantes nas construções estruturais, visto que a abertura de novos possíveis possibilita a diferenciação, enquanto as necessidades intervêm de maneira continua nas integrações, que, conforme Montangero e Maurice-Naville (1998, p.73), consistem em “[...] substituir pouco a pouco constatações de fato por reconstituições dedutivas. Isto se faz, entenda-se bem, não somente por diferenciação, mas por uma integração subsequente de subsistemas em uma nova totalidade que os religa”. Em outras palavras, os possíveis são fontes de aberturas de novas possibilidades, e as necessidades, fontes de fechamentos, sendo essa dinâmica o conjunto das estruturações em níveis superiores. Segundo Piaget (1986), não há começo absoluto para a gênese dos possíveis, assim como não há terminações absolutas para as necessidades. Toda a necessidade é condicional e necessita sempre da sua superação.

O estudo da evolução dos possíveis e do necessário na criança possibilitou uma melhor compreensão do processo de criação de novos conhecimentos, bem como retomou a importância da ação do sujeito na construção de suas estruturas cognitivas. Ele instiga a reflexão sobre as possíveis implicações da evolução dos possíveis e do necessário no desenvolvimento moral de um sujeito, visto ser este um tema de muito interesse para considerar-se o desenvolvimento de uma autonomia intelectual e moral. Assim, propõe-se que a utilização de dilemas morais (ligados ao cotidiano dos alunos) nos atendimentos psicopedagógicos possa criar condições para a abertura de novos possíveis e a consequente evolução do necessário no âmbito do desenvolvimento moral e intelectual.

Outras referências:

MONTANGERO, J. e NAVILLE, D. M. Piaget ou a Inteligência em Evolução. Porto Alegre: Artmed, 1998.
PIAGET, Jean. Development and learning. In LAVATTELLY, C. S. e STENDLER, F. Reading in child behavior and development. New York: Hartcourt Brace Janovich, 1972. (Trad.: Paulo F. Slomp, prof. FACED/UFRGS. Revisão: Fernando Becker, PPGEdu-UFRGS: 2007/2).

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